Chega um tempo em que é preciso sair desse discurso de que a vida nos fez isso ou aquilo. A vida não faz nada além de ser vivida, e quem vive essa vida fazedeira que tanto nos ocupa a boca? Como se fôssemos uma engrenagem no meio do mundo máquina o movimento nem sempre nos permite o próprio rumo, nem sempre nos leva aonde queremos, nem sempre vai pelo caminho que desejamos, nem sempre segue no ritmo que suportamos. Temos o movimento de dentro e o movimento de fora para lidar, temos as imperfeições em nossa matéria bruta e falta de manutenção, e mesmo quando funcionamos direitinhos podemos ser afetados pelas ferrugens e complicações da máquina que opera para além de nós – mas da qual inevitavelmente fazemos parte.
Não é fácil, não é simples, não é justo, mas é o que é. Sabidos das nossas possibilidades de encaixe e movimento, tudo o que podemos fazer e continuar nos movendo, continuar seguindo, continuar funcionando e tentando, sempre que necessário, um esforço a mais para mudar as rotas pelas quais somos obrigados a passar e que nos parecem seguir o caminho errado. Em alguns casos, também seremos levados, por fraqueza ou por leveza, ou ainda por maturidade em assumir que o certo que imaginávamos não era tão certo assim, ou que não era o único certo possível.
Certo ou errado, todo o ato se localiza no presente, e este é imprevisível, o olho do caos, mesmo que pareça calmo, se nos dermos conta de que não há nada nunca garantido – o presente é sempre o lugar do inesperado, do acontecimento, do fazer história do nosso passado. O presente é o lugar de todos os tempos, porque nele carregamos as experiências vividas e as expectativas futuras. O tempo, talvez nem seja tanto essa questão de tempo dividido em fazes – acreditamos nessa linha temporal para não enlouquecer. Mas quantas vezes nos pegamos fora da linha, sem ação no tempo, viajando entre suas dimensões do que já foi e do que não foi nunca, do que pode ser e do que será – ou talvez não? Particularmente nos episódios vulneráveis da nossa experiência, essas viagens no tempo podem ser uma fuga involuntária, um refúgio da alma para não perecer no soco seco do vazio ou nos destroços acidentados do pós-guerra entre as escolhas e os acasos que deram errado.
Sempre haverá quem nos diga para esquecer o passado, a aprender com as experiências e a permanecer no presente. Poderia ser se fosse fácil. Mas não é. Somos história, contada e recontada, esquecida e por vezes lembrada, sendo escrita, desenhada, ideia imatura ainda por fazer. Somos em todos os tempos, e não adianta a luta contra as memórias que nos perturbam ou nos acalentam, contra as projeções que nos distraem ou nos assustam. O que do futuro podemos esperar e no presente podemos construir, do passado podemos apenas aceitar, sim, mas não esquecer, não abandonar: o passado está em tudo o que somos. E essa consciência pode ser a salvação em muitas situações.
Em meio às tempestades tão pesadas que não nos permitem sair do lugar, às vezes tudo o que nos resta são as lembranças. Ter amizade pelas memórias não é deixar de viver e desejar reviver aqueles episódios perdidos, não é lamentar o que passou e ignorar o que passa, mas quando não passa o presente mesmo, já intoxicado de virar passado esquecido ou lamentável, as boas memórias podem nos lembrar do que somos, daquilo pelo qual passamos, do que superamos, dos erros que cometemos, dos bons momentos, da simplicidade de algumas alegrias e da alegria das grandes emoções, dos medos que vencemos, das pessoas que conhecemos… as memórias nos contam histórias sobre nós mesmos e nos apresentam como um estranho que podemos ter o prazer em conhecer. Há também ocasião para nos conhecermos com desconfiança e nem tanto prazer assim – e disso vem o desejo de mudança, por si mesmo, e por mais ninguém, para sentir mais prazer no futuro, quando voltando ao passado, voltar a ser apresentado para si.
As memórias podem ter o potencial para nos apartar as dúvidas do presente, quando pensamos que não vamos conseguir, e nos lembramos que tantas outras vezes já conseguimos. Quando nos dizem que não somos capazes (inclusive aqueles que nem sequer nos conhecem) e lembramos que já fomos capazes outras vezes, e que outras vezes realmente não fomos, mas a simples tentativa serviu para nos fortalecer, e lembramos ainda de outras vozes que nos habitam, que já disseram tanto, disseram que sim, disseram que não, mas como disseram é o que importa, é o que nos marca, e há sempre vozes amigas ou sábias que habitam a memória também, vozes que na época podem não ter feito nenhum sentido, mas que no presente ecoam toda a clareza do mundo. Esclarecem a vida.
Vale a pena preservar o passado e resgatar o passado, em seus bons e maus momentos, para nos lembrarmos de quem somos, do que vivemos, de onde estamos e alguns porquês. Para engendrar outros porquês e não deixar a vida passar morna. Vale a pena resgatar o passado, mesmo que ele pareça não guardar nada de bom – para não repetir os mesmos trajetos e trejeitos. Para levar a vida em vez de deixar que ela nos leve, porque quem sabe por onde passou e onde está, não se perde em qualquer caminho.
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