Por Patrícia Dantas
Hilda Hilst é uma transgressão necessária, um soco no estômago, daqueles que nos obriga parar a leitura e respirar ofegante, porque nossa santíssima dignidade já se perdeu ou foi parar em algum lugar mais sórdido que escondemos dos nossos hábitos. E, tendo Hilst nas mãos, também é a certeza que teremos alguma coisa desfigurada e pedindo clemência dentro da gente – porque se queimou com a brasa de sua própria pele e já foi engolido por um riso tolo e nostálgico que jamais compreendeu a necessidade de se pertencer, ter a si mesmo revelado entre mãos corajosas e dentes famintos. Hilst faz você comer a si e dentro de si num ato de gratidão e contentamento pela vida. Tudo é dentro e vem de dentro. E Deus, pai tão misterioso e observador contumaz dos nossos atos acha graça de tudo e nos olha com uma bondade estampada na cara.
É do paradoxo pessoa-humano-pessoa que vem essa sensação de esvaziamento para se chegar a algum lugar que faça tão bem ao processo interior da criação; é não morrer de tédio, mas asfixiar-se por dentro, de excesso de vida. É desse poder que tomamos das mãos de Hilst – o “divino ato criador” – esse arregaçar de mangas para exteriorizar o concreto de energias que se lança ao mundo e que se necessita de uma linguagem mais intensa e nua galgando cada fio limítrofe das nossas palavras.
Ela nos faz ver – e vemos sem mais transgredir a brutalidade cega e perspicaz como tomamos proporções desconexas e insanas, porque esse mesmo poder é também do extravio de algo que deixamos inerte por um tempo dentro da gente, é o que faz sentido na esfera do existir e não-existir. É o que somos em tempos cruzados. Não é questão de intimidade, mas de um tato revelador de corpos ausentes.
Existe uma coisa da qual não podemos fugir: o amor e o temor pelos nossos personagens. Não posso deixar de questionar com a minha profunda desaprovação de mim quando olho o outro (é que me vejo muito mais nos personagens que me falam, e não no real palpável que me açoita). Como posso não depender deles, se assim vivo e morro dentro de todos eles? Apossam-se de mim e me transmitem como gostariam de ser na pequena e elástica realidade que deles se desprende. A história de cada um segue as curvas e o contexto de roteiros muito particulares. Gesticulam e atuam com devoção e compaixão pelo substrato do humano.
O que fazer com alguém que nem sabemos ao certo se existe, se não se declara, se não fala, nem se define, não apresenta virtudes ou defeitos, que apenas se deixa existir livremente, de fomes, tormentos e algumas insaciedades? Eu nunca soube o que fazer deles, nem de mim. Também vou me descobrindo aos poucos – como eles que se deixam levar pelas suas chamas ardentes de curiosidade pelo estranho.
Do meu medo passando pelo eco do estranhamento e solidão encontro o familiar que me adapta ao mundo e remove toda a sensação de que algo é revelado somente em pleno contato. A revelação às vezes só precisa que fiquemos um pouco sozinhos e conectados com nosso estado de graça.
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