Por Tatiana Nicz

Se você tem mais de trinta anos deve lembrar-se bem sobre a comoção que a novela “Vale Tudo” causou em torno do mistério da morte de uma das protagonistas a inesquecível vilã Odete Roitman da grande Beatriz Segall. Mesmo sendo televisionados em época de Natal e Ano Novo, os últimos capítulos da novela atingiriam níveis de Ibope nunca vistos. Durante 13 capítulos todo mundo (inclusive os próprios atores) queria saber quem era o assassino, de quem era a culpa.

Acho essa analogia fantástica para entender no comportamento humano um processo muito curioso de vitimização, acho que talvez um pouco mais presente nos brasileiros. Nesse processo, assim como na tal novela, o foco sempre é achar o culpado. Não importa se Odete era vilã, não importa se foi feito justiça, poucos lembram quem a matou e o motivo, mas é importante saber de quem é a culpa. E assim transfere-se toda a responsabilidade e raiva para o culpado.

E ninguém nos ensina que achar o culpado não resolve muita coisa, ou melhor, talvez para um crime desse tamanho até resolva, o culpado deve ir preso, a justiça é feita; mas em uma esfera maior a pessoa continua morta, a dor continua doendo, o luto existe então, a meu ver, não resolve tudo.

E ninguém nos conta que viver à procura do culpado para nossos males e encontrando-o não resolve muita coisa. Aos vivermos à procura de culpados e usando desculpas para nossos atos falhos nos colocamos sempre na posição de coitado. E coitado não resolve problemas. Repare em quantas vezes contamos nossas histórias como se fossemos as únicas vítimas dos fatos, em como somos injustiçados. Dessa maneira a culpa é do governo, o Brasil que é ruim, do fulano que brigou comigo.

Assim gastamos uma vida toda usando desculpas que o nome já diz: des-culpa, aquilo que nos isenta de responsabilidades e justifica nossa posição de vítima. E por fim, ninguém nos ensina que nada de belo germina em campo inundado por pena. As doenças neurológicas, talvez por ser o campo mais “abstrato” da medicina, são um prato cheio de onde brotam as desculpas. Transtornos de personalidades, traumas de infância, nossos pais, nossa família, nossos amores, todos culpados por sermos assim tão quebrados.

Fato é que traumas todos nós temos, dores também. Vou mais além, não existe uma criação cem por cento saudável do ponto de vista da psicologia. Então se quando crianças e adolescentes somos demasiadamente imaturos para entender que podemos aquebrantar qualquer padrão que nos for condicionado; quando adultos deveríamos entender que temos responsabilidade plena e controle sobre nossos atos e sobre como reagimos às pequenas (e grandes) violências da vida.

O papel de vítima é confortável e a sociedade é preparada para te colocar nele todos os dias. Dessa vez, se servir de consolo à alguém, não é (apenas) nossa culpa: não somos instruídos em nenhum momento de nossa vida a construir o outro através de sua dor.

Olhamos para o deficiente como “coitadinho” e o próprio nome já carrega uma conotação totalmente equivocada do que é ser portador de uma necessidade física; olhamos para o miserável como “coitadinho” e novamente o nome traz a condição. Olhamos para o paciente como coitadinho; aquele que deve ficar à espera, à deriva, o pobre coitado.

Olhamos para quem vive a doença ou a morte de um parente ou ente amado com pena, aprendemos a olhar para tudo que nos é diferente como “coitado”. E quanto à nós mesmos: muitas vezes nos sentimos coitados. E enquanto sofremos e nos sentimos injustiçados, assim como na novela, o foco é achar culpados e, quando não conseguimos achá-los entre nós, culpamos um Deus todo poderoso que nos pune.

Colocar-nos e colocar aos outros no papel de vítima não nos engrandece como seres humanos, não nos agrega, apenas nos desconecta. O Universo, ao contrário do que a Igreja diz, não funciona através de sistema de recompensas. Tudo que você quer você precisa buscar e posso ser “a melhor” pessoa do mundo e ainda assim ser assaltada na esquina da minha casa, Deus não vai dizer: ela está se comportando, vamos poupá-la (ou recompensá-la). Pelo menos não da maneira como imaginamos.

Ao analisar os grandes líderes em qualquer área de atuação percebi uma característica em comum: pró-atividade. Não existem lamúrias, não existe processo de vitimização. Um problema não é visto como um obstáculo e sim como oportunidade. Stephen Hawking talvez seja um dos maiores exemplos disso. Suspeito que esses líderes que tanto nos inspiram já nasceram com esse entendimento do que é ser proativo, provavelmente ninguém lhes ensinou porque a sociedade não é preparada para isso, é um talento nato. Conheço gente assim, que não se lamenta, gente que faz. Mas qualquer um pode ser assim, basta querer.

Podemos começar observando e mudando nossos discursos, parando de nos lamentar, de usar desculpas, justificativas, de colocar a culpa no outro. Assumindo a nossa parcela de responsabilidade nos conflitos que vivemos, entendendo que somos menos importantes do que pensamos e que o mundo não está contra nós. Precisamos parar de ser reativo à tudo, esse comportamento é tão recorrente que existem expressões já relacionadas como “empurrar com a barriga” ou “quando a água bate na bunda”. A mudança que queremos ver no mundo depende primeiramente da nossa própria mudança de atitude.

Mas tenha cuidado, pois esse processo pode ser bem doloroso. Ao sair do posto de vítima você terá que entrar em contato com muita coisa que você faz-de-conta que não enxerga, por isso que nos colocamos em lugar de vítima em primeiro lugar. Acredito que é uma defesa nossa. É duro e trabalhoso assumir a nossa parcela de responsabilidade por tudo que acontece em nossas vidas e, principalmente, pelo que fizemos com ela. É muito mais fácil concentrar nossas energias e focar em “quem matou Odete Roitman”.

E esse aprendizado também pode começar colocando nossos dramas em suas devidas proporções. E para isso precisamos de comparativos, que é outro comportamento destrutivo que deveríamos abandonar, mas vamos dar um passo de cada vez. Portanto, enquanto somos treinados para desejar aos outros: alegrias, sucesso, realizações, paz; não contribuímos para seu crescimento como ser humano. A alegria só existe quando sabemos o que é dor; paz, sucesso, realizações são conquistas diárias. E um drama só ganhará proporção quando passamos por situações realmente dolorosas.

Então, você pode me achar meio cruel, mas eu desejo à você leitor e aos demais dor, muita dor. Dramas verdadeiros, daqueles que você deita a cabeça no travesseiro tentando entender como irá vencer o próximo dia, daqueles que você muitas vezes se pergunta como dará conta. Daqueles que já vemos em demasia no mundo, basta olhar com mais atenção. Precisamos aprender a sofrer pelo que é dor de verdade, por nós e pelos outros. Porque o sofrimento puro nos humaniza, nos conecta, nos torna melhores. E para isso primeiramente precisamos saber proporcionar a dor, entender o que é drama “de verdade”. Para mim é o que está relacionado com palavras como morte, doença grave e miséria – de todos os tipos.

Se entendêssemos tudo isso, entenderíamos também como engrandecemos conflitos que na verdade são pequenos, aprenderíamos que um coração partido, uns quilos a mais, a falta de dinheiro para comprar algo que talvez não nos seja tão necessário, a briga com o amigo ou parceiro, tudo isso perde força diante do que realmente nos dói. Aprenderíamos que quando somos proativos e não reativos a vida ganha muito mais valor. Que somos donos de nosso destino e isso é algo realmente grandioso.

Sim, vale tudo, se quisermos seremos sempre Odete, mas ao contrário da personagem ainda estamos vivos e é preciso entender que enquanto vivos podemos escolher com mais cuidado nossas pequenas mortes diárias.

Tatiana Nicz

Libriana com ascendente em Touro. Católica com ascendente em Buda. Amo a natureza e as viagens. Eterna curiosa. Educadora e contadora de histórias. Divagadora de todas as horas. Escrevo nas horas vagas para aliviar cargas, compartilhar experiências e dormir bem. "Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia." Guimarães Rosa

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