Por Ana Flávia Velloso
Os jornais dão notícia do incêndio criminoso na casa da torcedora que chamou o goleiro do time adversário de “macaco.” O linchamento, que antes era moral, passou às vias de fato. Não se trata de minimizar o conteúdo racista da palavra usada. Mas é a história toda que se deve contar, pois, como me ensinou meu pai, pior do que a mentira é a meia verdade.
O insulto ocorreu num estádio de futebol, onde gramados e arquibancadas têm o hábito de testemunhar impropérios. Por que tanta comoção em torno de seis letrinhas proferidas num contexto tão, digamos, específico?
Psicanalistas costumam evocar a inclinação do indivíduo a se exaltar com feitos que ele próprio identifica como potencial fraqueza sua. É como se pela indignação pudéssemos expurgar o mal que habita nossa própria alma. Segundo essa lógica, a crítica voraz seria um meio de exorcizar nossos demônios, promovendo a equação simples: ele, malvado, eu, que o reprovo e repudio, bonzinho.
Hannah Arendt, ao presenciar o julgamento de Adolf Eichmann, expressou a opinião de que aquele homem, visto como a encarnação do mal, não passava de um burocrata. Ele seria, para ela, a personificação daquilo que chamou de a “banalidade do mal”, ou seja, de uma ideologia criminosa que permeava as estruturas de um Estado, de uma sociedade, de uma cultura.
A notável pensadora alemã, de origem judaica, foi mal interpretada. Acusaram-na de assumir a defesa do criminoso nazista. Hannah Arendt foi alvo de uma espécie de linchamento intelectual. Também pudera. Tocava ela num ponto nevrálgico. Sua tese era impalatável aos judeus, que buscavam, na condenação de Eichmann, uma catarse de sentimentos com os quais se tornava difícil conviver. Identificar o mal numa pessoa e aniquilá-la deve ser menos penoso que vislumbrar a injustiça como difusa, sem rosto, sem nome.
A sociedade ocidental, por sua vez, tão ciosa dos valores elevados que propagava naquele pós-guerra, pode ter sido insuportável a ideia de que a barbárie pudesse ter se disseminado também em suas bases, e de que ela própria teria sido cúmplice do horror que então censurava com veemência. A todos, quem sabe, teria parecido uma boa saída detonar os símbolos, acreditando que com as suas cinzas evaporava-se uma aberração, purgavam-se os crimes cometidos contra a humanidade.
Pergunto-me se o alvoroço criado pelo racismo – se é que houve mesmo manifestação de racismo – da jovem torcedora não se produziu por termos sido obrigados a confrontar um de nossos maiores flagelos. Talvez os julgadores mais severos tenham bem presente na memória o fato de que até outro dia alguns clubes brasileiros barravam abertamente a entrada de negros, que expressões pejorativas para designar os afrodescendentes, não faz muito tempo, eram articuladas impunemente, e ainda o são, hoje, em voz baixa. Talvez, enfim, seja um ódio racial inconsciente, convertido em insuportável culpa, que a sociedade brasileira queira arrancar de suas vísceras mediante atos de hostilidade dirigidos a uma pessoa determinada, escolhida no meio da multidão para purgar seus pecados.
Sigmund Freud mencionou a escolha de bodes expiatórios como o mais primitivo dos mecanismos de defesa do ser humano. É aquele gesto corriqueiro de descontar no outro as próprias frustrações e rancores. A sublimação seria o mais bem sucedido daqueles mecanismos. Sublimamos quando extraímos do sofrimento o poder de criar, como escrever um poema ou pintar um quadro. No âmbito coletivo, a agressão está longe de ser a forma mais evoluída de expressar boas intenções.
Gilberto Freyre escreveu, nos anos trinta, Casa Grande e Senzala. Se não podemos produzir obra-prima semelhante sobre as origens da discriminação racial em nossa sociedade, que tenhamos, pelo menos, ânimo para ler o livro, coragem para examinar nossas consciências e nos contarmos uma verdade inteira, e não cortada ao meio, por mais infame que ela nos pareça.
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