“Resgate do Jack”

Vou dizer: minha percepção da delicadeza que a vida é, e o que ela representa, muda o tempo todo.

Hoje, há pouco, em mais um dia de caminhada com os cachorros até a cachoeira, Jack resolveu pular uma distância, hoje, maior por causa das chuvas constantes, entre duas pedras, que não davam conta de suas perninhas curtas. Lá se foi o Jack rio abaixo e eu atrás dele.

A correnteza era muito mais rápida do que eu poderia acompanhar, saltando as rochas rio abaixo.

Felizmente, ele conseguiu subir em uma grande e ficou ali. Eu, continuava descendo pra resgatá-lo, enquanto gritava pra que ele não saísse dali.

Não funcionou. Muito inteligente, ou apaixonado, vai saber, resolveu pular para outra pra vir até mim.

Lá se foi ele de novo. Mas, onde estava a correnteza, estava bem pior. Parei por segundos pra ver aonde ele ia e me orientar, até que ele sumiu embaixo de uma grande rocha.

Joguei-me pra procurá-lo até que o vi subir novamente. Fui descendo pela água e o vi subir em uma nova pedra. Alcancei-o, mas, um pequeno trecho de água ainda nos separava. Ele tremia sem parar. Vi, lá em cima da ponte, um senhor que acenava. Acho que ele me ouviu gritando por ele e veio ver o que estava acontecendo. Só rezava pra que nenhum dos outros cachorros que estavam conosco resolvesse me seguir.

Comigo só tinha o Tobias, que ficou lá no início aguardando meio inquieto e observando tudo.

Sr Paulino veio descendo as pedras ao nosso encontro, enquanto eu o mantinha onde estava.

Nesse meio tempo, Alex e Miranda, que estavam na estrada me esperando, desceram com os outros até lá pra ver por que eu estava demorando tanto, e se depararam com a cena.

Nós estávamos totalmente molhados em cima da pedra e S. Paulino se aproximando. Alex deu a ele uma enxada, e com ela seguramos o Jack e o puxamos. Ele estava de volta ! Meio atordoado, mas estava ali.

Tivemos que subir pelo meio da mata mas, a essa altura, isso era o de menos.

Jack não é nosso, é de um amigo, e quando nos mudamos, ele estava aí. Tomava conta da rua e todos cuidavam dele. Aos poucos o fomos agregando a nossa família de adotados. É um cãozinho bem mal-humorado e ciumento, que muitos não o teriam salvo.

Quando tudo terminou, e voltava pra casa caminhando com ele e o Toby, os outros voltaram de carro, foi que senti medo, pensei em como o mundo ficaria mais triste sem ele.

Lembrei-me de uma matéria do Leonardo Sakamoto, em que ele fala sobre como o mundo seleciona a quem salvar.

Minha filha tirou essas fotos depois que passou seu susto.

Chega a ser chocante saber que outros refugiados se autodenominam sírios, só para ganharem alguma simpatia e o direito a completarem seus propósitos de vida, com direito à dignidade e à paz, até que o fim chegue naturalmente, como deve chegar, porque, cedo ou tarde, um dia o tempo acaba mesmo, pelo menos esse.

Com quatro patas ou duas pernas, mal-humorado ou bom astral, de “raça”, vira lata, Jack, Rex, Mohamed, Isaac ou Kunta, quem somos nós afinal, para decidir quem deve ou não ter direito à vida ?

Não sabemos o dia de amanhã. Só espero, que um dia, não seja mais uma entre milhares de brasileiros em fuga, rejeitada por ser parda e tupiniquim.

Flavio Klein, graças a Deus e ao diclofenaco de potássio, que ando tomando nos últimos dias pra conter a dor na minha perna, tá aqui teu “filho”. Dormindo em paz, ao meu lado, enquanto escrevo isso.

Peço licença, e faço minhas as palavras de Leonardo:

“Que mundo é esse em que alguém miserável se passa por outra pessoa em situação deplorável no intuito de garantir a sua sobrevivência?

Ou, por outra: o que são favelas e bolsões de miséria, senão campos de refugiados econômicos, expulsos do quinhão de direitos que deveriam ser garantidos a todos desde que nasceram simplesmente por pertencerem à humanidade?”

Agora vou tomar um banho.

Adriana Vitoria

Mineira de alma e carioca de coração, a artista plástica, escritora e designer autodidata Adriana Vitória deixou Belo Horizonte com a família aos seis meses para morar no Rio de Janeiro. Se profissionalizou em canto, línguas e organização de eventos até que saiu pelo mundo sedenta por ampliar seus horizontes. Viveu na Inglaterra, França, Portugal, Itália e Estados Unidos. Cresceu em meio à natureza, nas montanhas de Minas, Teresópolis, Visconde de Mauá, e do próprio Rio. Protetora apaixonada da Mata Atlântica e das tribos ao redor do mundo, desde a infância, buscou formas de cuidar e falar deste frágil ambiente e dos seres únicos que nele vivem.

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Adriana Vitoria

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