Por Marcela Alice Bianco

Engana-se quem se considera totalmente livre ou acredita que o mundo é realmente como se vê. De certa maneira, e em alguma dimensão, somos todos prisioneiros de nós mesmos e, por essa razão, vemos o mundo como somos!

Cada um enxerga a vida através de suas próprias lentes e o que nos compõe na trama da vida depende de inúmeros fatores biológicos, psíquicos, sociais, culturais, familiares, etc. E como grande parte da nossa vida consciente sofre influência dos aspectos inconscientes, nunca seremos totalmente donos da verdade, das nossas próprias casas internas e das nossas decisões.

Claro que nunca poderemos perder a noção de reponsabilidade e de livre arbítrio pois, se assim fosse, seria impossível nos organizarmos em sociedade e até mesmo entender que ampliar a nossa consciência é a melhor forma de estarmos mais aptos ao discernimento, às relações de alteridade e ao exercício da ética na vida diária.

Porém, desde a introdução da Psicanálise de Freud a partir dos estudos das neuroses e da hipnose até as descobertas de Jung sobre o conceito de complexo existente na Psicologia Analítica, os fatores inconscientes e sua influência sobre o comportamento humano são amplamente estudados e divulgados, tanto na área científica quanto no senso comum.

As descobertas mais recentes da Neurociências vêm confirmando o que lá atrás já se teorizava através das observações e das análises. Partes diferentes do nosso cérebro são responsáveis pelo funcionamento da vida. Uma delas, o córtex pré-frontal é a responsável por nossas funções executivas, como o raciocínio, julgamento, pensamento lógico, simbólico, etc. Porém, essa estrutura não está pronta assim que nascemos, mas se forma durante toda infância até o início da vida adulta.

Em contrapartida, as partes que são responsáveis pelos comportamentos reflexos, instintivos e pelas emoções (sistema límbico e tronco cerebral) já estão funcionando a todo vapor. O bebê é capaz de interagir com seu cuidador e reagir frente às necessidades de fome e cuidado, mesmo que de maneira rudimentar.

Assim, as primeiras experiências são registradas e absorvidas prioritariamente nessas partes do cérebro que já se encontram prontas e amadurecidas, formando o que chamamos de memória implícita. Esse tipo de registro inconsciente não envolve a lembrança dos fatos (por isso não conseguimos lembrar do que nos aconteceu nos primeiros anos), mas influencia o tom básico do sentimento de si mesmo no mundo e também a formação dos registros conscientes posteriores.

Ao mesmo tempo, o córtex-frontal segue em franca expansão e formação com base nas nossas experiências e estímulos para o aprendizado. Mas também sofrendo a influência das outras partes do cérebro que podem distorcer a percepção, interferir nas expectativas do futuro e modificar o comportamento.

Neste ponto do texto você já deve estar se perguntando: – Mas o que tem isso a ver com essa história de vermos o mundo como somos e de não sermos senhores da nossa própria casa?

Então vamos alinhavar tudo isso! Quando acreditamos que somos conscientes dos nossos atos e escolhas, acreditamos que somente a parte do nosso cérebro responsável pela consciência está atuando, mas isso não é verdade. Tudo está ativado o tempo todo e uma parte influencia a outra. Apesar da aprendizagem e da expansão no nosso córtex, os núcleos responsáveis pelas emoções e pelos instintos continuam agindo de maneira predominantemente inconsciente sobre nós.

Todos conhecemos os tão chamados complexos de inferioridade, superioridade, de Peter Pan, de Cinderela, etc. não é mesmo? Eles, por exemplo, têm a ver com toda essa história!

Os conteúdos não assimilados, reprimidos, fixados e não registrados na consciência (instintos, emoções, traumas, etc.) se agrupam em torno de um tema e se tornam verdadeiras unidades vivas, capazes de existência própria (autônoma) e com forte carga afetiva dentro da nossa psique. E é justamente essa força que chamamos de Complexo.

Como disse a renomada Psiquiatra Nise da Silveira, “não somos nós que temos o complexo. É o complexo que nos tem, que nos possui”. Assim, quando dominados por nossos complexos inconscientes, nos tornamos verdadeiros prisioneiros da experiência não simbolizada, assimilada e integrada na consciência.

Mas, como podemos identificar isso na nossa vida cotidiana? Saber quando é o Complexo que fala e age por nós e que não estamos sendo tão autênticos como achamos que deveríamos ser?

Os complexos interferem na vida consciente por meio de atos falhos, lapsos, perturbações da memória, situações contraditórias, atos impulsivos, automatizados, comportamentos estereotipados, fantasias, etc. Eles funcionam como verdadeiros imãs e atraem para si tudo o que se relaciona com ele. Uma pessoa dominada por um complexo vive em função da sua energia compulsiva. Eles funcionam como verdadeiras prisões invisíveis da existência, das quais a pessoa nem mesmo imagina estar.

Nem por isso, os complexos são essencialmente patológicos. Afinal, ao mesmo tempo que eles sinalizam que há algo não integrado e assimilado na consciência, eles também servem de estímulo para que nos esforcemos em nos desenvolver e amadurecer, mantendo uma abertura para novas possiblidades de existir no mundo.

Vamos tomar como exemplo uma pessoa que sofre de um complexo de inferioridade. Ela terá dificuldades em aceitar os pontos fortes de sua personalidade. O seu olhar turvo enxergará somente os próprios defeitos e fraquezas, projetando fora de si todo o potencial negado. Os outros serão os bons, belos, capazes, superiores, etc. Assim, o estímulo é identificar o que em sua biografia contribuiu para a formação dessa visão desajustada, trabalhar os afetos relacionados a essa atitude pessimista e reivindicar para si próprio as qualidades e tesouros depositados para fora de si.

Quando dominados pelos complexos não temos escolhas, vivemos em estado de identificação, como verdadeiras marionetes em suas mãos. Mas, se formos atentos, podemos identificar a atuação de um complexo em muitas situações da vida diária!

Ele estará ativado quando não queremos abrir mão de uma conduta, uma ideia, crença ou ação e agimos de maneira exagerada, explosiva, unilateral e reacionária frente a diversidade de opiniões, sem o mínimo de questionamento ou discriminação racional.

Também estará atuando quando agimos de maneira compulsiva e não conseguimos escolher ou barra nossos instintos e agimos de maneira impulsiva, descontrolada e irracional. E depois nos perguntamos, o que foi que nos deu, sem encontrar respostas.

Eles serão profundamente afetados por nossas emoções, frustrações e dificuldades do passado não elaborados e muitas vezes inconscientes. Neste caso, percebemos sua ativação quando não conseguimos atualizar nossa condição, superar nossos traumas e desamparo e passamos a reagir como se tudo que já se foi continuasse presente. Ou quando permanecemos encarcerados no futuro, quando a nossa expectativa do porvir teima em não cessar dentro de nós.

O próprio corpo pode ser uma via de expressão dos complexos quando ficamos fixados em padrões estéticos e de saúde e não compreendemos que ele envelhece, modifica-se e adoece a desdém do nosso desejo.
Enfim, quando subjugamos a força do inconsciente e nos escondemos de nós mesmos, acabamos nos tornando verdadeiros cativos, como gênios presos em uma garrafa!

Prisioneiros dos complexos, não temos escolha, liberdade e autonomia. Permanecemos privados da verdadeira essência do nosso Ser, da possibilidade de vivenciar a plenitude e conviver melhor com os outros e com nós mesmos.

Mas, como superar nossos complexos? Para sair dessas prisões precisamos caminhar rumo a ampliação da consciência. Reconhecer e recolher as projeções inconscientes. Aprender a discriminar o que realmente é fruto da nossa escolha e o que é a voz do complexo atuando dentro de nós. Precisamos sair do automatismo e, a partir desse novo caminho, nunca abandonar a estrada. Confiar na vida, entregar-se a novos voos ou aprender a pôr os pés no chão.

Para identificar e assimilar a força de um complexo precisamos nos despir das nossas cascas, das nossas defesas e se despojar do nosso orgulho, da vaidade e de tudo que nos é pré-concebido. Soltar os grilhões das certezas e resistências. Permitir a dúvida e buscar construir nossas pontes de conhecimento.

Tarefa hercúlea que exige esforço intenso e, muitas vezes, um bom companheiro de estrada, como o Psicoterapeuta. Num ambiente neutro, de acolhimento e sigilo é possível examinar cuidadosamente os complexos, identificar suas origens, expressar os afetos neles contidos e, assim, ganhar novas formas de compreender a si, o outro e o mundo. Relação que envolve comprometimento, empatia, confiança, esforço e profundidade.

Temos a nosso favor o fato de que nosso cérebro ser um órgão plástico e uso-dependente, ou seja, ele se modifica e se transforma com a experiência vivida, imaginada, sonhada e sentida. Assim, mesmo que os conteúdos sejam referentes às fases da vida em que nunca teremos um registro consciente, poderemos trabalhá-los através das artes, do movimento, das técnicas de relaxamento e da própria relação terapêutica. Recursos que ajudam o cérebro a compor novos caminhos e com isso, deixar de atuar através dos trilhos dos complexos.

Afinal, para alargar nosso poder de escolha e discernimento é necessário mergulhar e descer nas profundidades do Ser para encontrar sua essência, e após transformar-se, projetar-se novamente em direção ao alto. Subir para um novo patamar de consciência e vislumbrar a luz. Para então, seguir em frente, não se esquecendo que outras descidas virão e serão necessárias para que conquistemos o verdadeiro tesouro que somos Nós!

Marcela Bianco

Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae e em Gerontologia pelo HSPE. CRP: 06/77338

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