A nossa obstinada busca pela “paz interior” nos garantirá a refinada capacidade de nos blindarmos dos perigos do mundo e do maior perigo de todos: sermos incluídos na dor do outro. Sairmos da confortável situação de “espectador” para a arriscada tarefa de “personagem” é algo que nos assusta demais. Esse esforço de preservação pode nos render uma ilusória sensação de estarmos protegidos das tragédias alheias. Mas, nos cobrará um alto tributo: seremos ilhas humanas cercadas de indiferença por todos os lados. A indiferença é uma atitude deliberada e cruel, travestida de distanciamento involuntário. O fato de não sermos nós os causadores do sofrimento, não nos absolve; não nos concede o benefício da cegueira emocional. Observar o sofrimento alheio seja ele confesso ou não, e nem ao menos nos dispormos a encontrar uma singela forma de minimizá-lo, nos iguala àquele que o causou. Ou não?!
A mínima disposição de sairmos do modo automático, talvez nos ajude a ter olhos capazes de enxergar além do que é óbvio ou visível. Desde o momento em que saímos de nossas camas (e nesse caso é importante, mas não indispesnável, que tenhamos uma, com um teto confortável sobre ela mais as garantias mínimas de sobrevivência!), até o momento em que retornamos a ela no final do dia, fazemos inúmeras intersecções com outras pessoas, conhecidas ou não. No entanto, o fato é que somos especialistas em transformar o que seria uma intersecção num tangenciamento. Tomamos tanto cuidado para não nos esbarrarmos que ficamos assim: linhas que se tocam, mas não se cruzam. Somos seres isolados, encapsulados, encaixotados.
Imaginemos, então, que a partir da próxima manhã tomássemos a arriscadíssima decisão de sairmos da tangente. Abriremos os olhos ao raiar do dia e sairemos de nossas confortáveis camas com a legítima intenção de mantê-los abertos, não apenas para ver, mas para olhar e, sobretudo, enxergar o nosso entorno. Quem sabe com essa corajosa decisão não acabemos por abrir também os nossos ouvidos e, até, quem sabe as nossas mentes e corações. Assim, transformados em seres capazes de perceber o outro, abriremos mão da nossa redoma de ignorância emocional e uma nova categoria de relação humana se apresentará diante de nossos maravilhados e incrédulos olhos. Imagine sermos capazes de enxergar um possível olhar preocupado da pessoa que nos serve o café na padaria; ouvir e ser tocado por um eventual suspiro de um colega que trabalha ao nosso lado (como é mesmo o nome dele?); perceber e se importar com a postura acanhada daquela outra pessoa que divide o espaço conosco no curso de inglês. Imagine sermos ousados a ponto de nos importarmos com isso, de nos envolvermos com isso, de sairmos da nossa zona de conforto para tocar a zona de desconforto do outro.
As relações humanas nesse nosso maravilhoso mundo moderno são pautadas no individualismo e na perda do conceito de coletividade. Entretanto, existem inúmeros insurgentes grupos de pessoas que nadam contra essa corrente e fazem parte de uma estranha categoria que arranja tempo, disposição e desejo para importar-se com questões que não afetam diretamente suas vidas.
Fundada por Wellington Nogueira em 1991, a ONG Doutores da Alegria, foi inspirada no trabalho do Clown Care Unit, criada por Michael Christensen, diretor do Big Apple Circus de Nova York. Wellington integrou a trupe de palhaços em 1988, satirizando as rotinas médicas e hospitalares mais conhecidas. Ao retornar ao Brasil, decidiu implantar um programa semelhante. Vinte e quatro anos depois, a ONG já realizou mais de um milhão de visitas a crianças hospitalizadas, seus acompanhantes e profissionais de saúde. A base do trabalho é o resgate do lado saudável da vida e todos os seus projetos se utilizam da arte para potencializar as relações. O trabalho da ONG, gratuito para os hospitais, é mantido por recursos financeiros obtidos através de patrocínio, doações de empresas e pessoas e por meio de atividades que geram recursos, como palestras e parcerias com empresas.
Em 1997 um grupo de jovens começou a trabalhar pelo sonho de superar a situação de pobreza em que viviam milhões de pessoas. O sentido de urgência em assentamentos precários os mobilizou massivamente a construir moradias de emergência em conjunto com as famílias que viviam em condições inaceitáveis e a focar sua energia em busca de soluções concretas para os problemas que as comunidades enfrentavam a cada dia. Esta iniciativa se converteu em um desafio institucional que hoje é compartilhado em todo o continente. Desde o início no Chile, seguido por El Salvador e Peru, TETO empreendeu uma expansão e após 18 anos mantém operação em 19 países da América Latina: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai e Venezuela. TETO é uma organização presente na América Latina e Caribe, que busca superar a situação de pobreza em que vivem milhões de pessoas nas comunidades precárias, através da ação conjunta de seus moradores e jovens voluntários. TETO tem a convicção de que a pobreza pode ser superada definitivamente se a sociedade em conjunto reconhecer que este é um problema prioritário e trabalhar ativamente para resolvê-lo.
O trabalho voluntário é uma forma de assumirmos o nosso papel de ser individual que integra e interage com a sociedade; é oferecermos o nosso empenho e trabalho para revertermos situações de injustiça social, emocional e moral. Quando nos dispomos a abraçar uma causa que não tem nada relacionado diretamente com nossas questões pessoais, damos inúmeros passos à frente na trajetória da nossa efêmera vida. No entanto, não é indispensável estarmos engajados em grupos ou coletividades unidas por este ou aquele ideal. Se estivermos, melhor! Mas, se formos capazes de fazer algo muito mais simples e alcançável para todos, já estaremos no início do caminho; é um excelente primeiro passo. Diante da dor, da insegurança, da fragilidade de qualquer pessoa, próxima ou nem tanto, NUNCA diga “Se cuida!” ou “Fica bem!”. Essas pequenas expressões, tão corriqueiras, ditas automaticamente porque são socialmente aceitas, revelam uma triste superficialidade. E o cultivo dessa postura tão ausente e superficial pode nos custar muito caro. Pode tornar-nos seres irreversivelmente insensíveis; incapazes de nos conectar com o outro. Em um médio espaço de tempo, cegos ao que não nos atinge diretamente; e, logo mais, cegos de nós mesmos.
Ana Macarini