Outro dia eu assisti a um filme de terror bem fraquinho na tv. Quase tudo nele foi descartável, exceto uma cena que vira e mexe me volta à cabeça. No filme um homem descobria que o vizinho, alguém acima de qualquer suspeita, aprisionava pessoas em seu porão. Tendo descoberto isso ele então é, lamentavelmente, convidado pelo vizinho louco para ir até a casa dele, a fim de degustar um vinho caro. E, por mais incrível que pareça, mesmo depois de saber toda a verdade acerca do outro, ele aceita o convite.
Então o vizinho enche uma taça de vinho e diz com a maior calma do mundo: “Veja como a gentileza pode ser perigosa, às vezes, ela nos faz correr riscos para sermos gentis com o outro”. Ele falava de riscos físicos, mas eu sublinharia aqui o risco emocional de encontros permeados por conversas desastrosas pronunciadas com doçura. Então a correria começa no filme e nada mais dele vale a pena ser contado aqui.
Confesso que essa cena me chamou bastante a atenção. Na hora me pareceu insanidade fazer o que o homem fez diante de um predador, mas não demorou muito e eu me vi em uma cena parecida, com uma pessoa sentada em minha frente me contando coisas absurdas, que fatalmente me feriram, com uma delicadeza que faria inveja ao vizinho louco do filme.
O mais correto nesses casos é levantar e ir embora ou colocar as ideias no lugar e falar com todas as letras o que estamos pensando diante da situação, mas temos uma estranha mania de ouvir ou tentar entender histórias sádicas ditas com toda calma do mundo. Estamos programados para nos defender diante de gritos, mas não diante de coisas horríveis ditas com calma.
Reparem que muitas pessoas costumam usar essa artimanha para dar o fora em alguém. “O problema sou eu, não você”. “Você é muito especial para mim, eu é que não te mereço”. E por aí vai. Esse tipo de conversa hipócrita costuma minar a nossa possibilidade de defesa ou a possibilidade de dizermos verdades.
Precisamos estar atentos para, nesses casos, não sermos assaltados pela necessidade de sermos gentis a todo custo. Esqueça aquilo de parecer normal diante do que é abominável. Defenda-se. Proteja-se. Ame-se. Fale o que for preciso e vá para bem longe de quem não te respeita, não te ama, não te estima e usa a fala cordial para ofender e humilhar.
Seja gentil com o outro, mas antes seja estupidamente gentil com você e saiba a hora de se levantar e dar um tchau para quem nunca deveria ter sequer pensado em te desrespeitar com palavras mansas e afiadas que caberiam bem não no seu ouvido, mas em um penico.
Se abrace, se ame e tome distância de quem parece cordial, bonzinho e amigo, mas não é.
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