Era meio dia. Um sol causticante fazia doer os meus pés, dando a sensação de que o solado do meu sapato já havia derretido. A cidade estava apressada. Daí a poucas horas teríamos a transmissão de um jogo da seleção brasileira de futebol e todos corriam para as suas casas ou procuravam algum estabelecimento onde pudessem ver a partida.
No meio da praça, um pregador de cabelos brancos dizia, aos berros, uma qualquer coisa sobre o amor de Deus e a salvação eterna. Seu discurso, bem como a sua existência, pareciam ser ignorados pelos transeuntes e talvez a indiferença só não fosse total pelo incômodo causado pelos gritos do pregador, em razão dos quais alguns franziam a testa.
Também eu tive a intenção primeira de passar por ele a passos largos. Era quase a hora do jogo e certamente o tom do seu discurso não me era muito agradável. Mas, como sempre me acontece, alguma estranha força fez com que eu parasse diante dele, fitando-o por um ou dois minutos. Ao final desse breve tempo, abri um sorriso, inclinei a cabeça como se agradecesse, e segui em frente.
Saí da praça e já havia caminhado mais de meio quarteirão quando ouvi alguém me gritar:
– Moça, por favor, moça! Espera!
Eu me viro e estava ali o pregador. Aquele senhor olhou fixamente nos olhos, estendeu-me a mão com uma flor pequenina, colhida furtivamente no canteiro da praça, e disse:
– Obrigado, moça. Muito obrigado.
O segundo “obrigado” saiu a custo, com a voz já embargada, enquanto uma lágrima discreta lhe corria pelo rosto.
Surpresa com a dádiva, eu inclinei novamente a cabeça, agradeci, sorri e prossegui a caminhar em direção à minha casa. Essa cena passou diversas vezes na tela da minha memória até que cheguei à conclusão de que não há nenhuma muralha, nenhum escudo, nenhum armamento, nada que nos faça mais protegidos e mais fortes do ter a alma envolvida e permeada pela gratidão.
Ser grato é ter um pacto de reciprocidade com a Vida. Só conseguem celebrar esse acordo aqueles que já alcançaram a compreensão de que toda e qualquer experiência é uma oportunidade de crescimento espiritual e de fortalecimento moral, porque propicia-nos o autoconhecimento.
A cada momento, teremos motivos de sobra para esconjurar a vida, achincalhar a existência, maldizer os circunstantes… Mas, se escolhermos o prisma da gratidão, essas mesmas circunstâncias nos darão oportunidade de agradecer pela dádiva de estarmos vivos, de alegrarmo-nos e maravilharmo-nos na constatação de que existimos como sermos únicos e fantasticamente dotados de percepções, possibilidades, habilidades, sonhos e sentimentos ímpares.
Aquele humilde pregador poderia estar ofendido com o mundo que o ignorava, poderia estar decepcionado com a falta de fé das pessoas, poderia julgar-se ofendido, desprezado, não amado, mas a sua alma estava blindada.
A gratidão é uma blindagem que só pode ser traspassada por flechas de ternura, por dardos de uma gratidão de infindável magnitude para que a pessoa, de ternura e gratidão ferida, se faça ainda mais forte. Ainda mais protegida contra frieza e da ingratidão do mundo que a cerca.
PS.: A flor que recebi ainda a guardo como marcador de página de um livro de cabeceira. Sempre que a olho, a minha alma, em prece, agradece. Simplesmente agradece. Não importa a quem ou porquê…
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