Marcel Camargo

Nada fica igual após a morte dos pais.

Ser pai é ser humano, é falhar, é errar também. É amor que continua, é luz que não se apaga, é eternidade afetiva. Ser pai é, sobretudo, entender o pai que tivemos.

Apesar de ser a única certeza dessa vida, a morte ainda parece ser colocada em recantos onde não possa ser vista, falada e refletida. Porém, ela inevitavelmente chega a nossas vidas e enfrentá-la requer juntar e digerir, dentro da gente, tudo o que ficou oculto, tudo o que evitamos por muito tempo. Perder minha mãe, há oito anos, foi uma jornada extremamente dolorosa. Perder meu pai, recentemente, também foi.

Cada vez mais, a morte vem sendo excluída dos ambientes e da vida das pessoas. Quando eu era criança, a grande maioria das pessoas morria em casa e os corpos eram velados nas casas de família. Hoje, a morte quase que se confina tão somente nos hospitais e clínicas, lá longe de nosso cotidiano, longe das crianças, dos familiares, dos amigos. Longe do curso da vida. Daí ninguém pensa sobre as perdas e tem que lidar com ela de supetão, como algo inconcebível. Com exceção da partida precoce de um filho – essa não há quem entenda -, a morte faz parte do curso natural do ciclo da vida, ou ao menos deveria fazer.

E cá estou eu a refletir novamente diante da partida de meu pai, para a qual, como a maioria das pessoas, eu não estava preparado. Não imaginava que eu sofreria tanto com sua morte, porque nem eu mesmo tinha noção do meu amor por ele. Eu amei minha mãe desde que abri os olhos; todas as minhas lembranças têm o meu amor por ela. Com meu pai foi diferente. Eu não o amei desde o início naturalmente – foi um amor construído, lapidado, suado, maturado, conquistado -, mas, nem por isso, foi menos verdadeiro.

Como ele se foi aos poucos, ao longo deste ano, pude refletir muito sobre nossa relação, que nem sempre foi tranquila. Fui puxando as memórias e assistindo ao filme de minha vida com meu pai, sob meu olhar mais maduro, meu olhar de pai – criar filhos nos traz um entendimento incrível sobre a forma como fomos criados. Eu então me vi agindo com meu filho tal qual meu pai agia comigo; sim, daquele jeito que eu tanto relutava em aceitar. Ouvi a mim dizendo ao meu filho o que meu pai dizia, exatamente o que meu pai me dizia e me deixava irritado.

E fui me lembrando de tanta coisa boa que vivi com ele. Meu pai sambava super bem, dançava com minha mãe, cheios de elegância – amava vê-los dançando -, imitava uns passinhos do Didi dos Trapalhões, cantando “eu fui às touradas de Madri”. Muitas vezes, ele saía de carro comigo e com meu irmão, e, lá pelas tantas, dizia que estava perdido. Parava e perguntava às pessoas como fazia para chegar ao centro e a gente ficava aliviado quando achava o caminho de volta, mesmo, no fundo, sabendo que ele estava blefando – era o modo de ele dizer que nos amava e que jamais nos perderíamos enquanto ele estivesse no comando.

Eu me lembrei de que, na minha infância, sempre que eu estava com febre, eu sentia, madrugada adentro, a mão de meu pai sobre a minha testa, checando se minha temperatura abaixara. E isso me trazia uma segurança imensa. Foi assim que eu cresci tendo a certeza de que, sempre que a vida me derrubasse, eu poderia contar com ele. Meu pai sempre me motivou a publicar meus textos, sempre me falava disso. Revisitar o passado com um olhar maduro nos traz uma compreensão tão clara da importância de algumas pessoas em nossa jornada.

A vida é perfeita e sempre encontra um jeito de nos aliviar a barra, assim como descobri que a morte faz com que a gente se lembre do melhor da pessoa que se foi. Não fica nada de ruim. Nossas lembranças se preenchem dos bons momentos que vivemos juntos, clareando nossa consciência quanto à verdade do que se foi. Hoje, percebo, por exemplo, que, quando meu pai era ríspido comigo, ele estava me preparando para os tombos da vida adulta. Ele me conhecia, percebia que eu era muito sensível e me colocava de frente com a dureza, para que eu me fortalecesse, para que eu não viesse a me machucar quando me tornasse gente grande.

Por isso, é besteira ficar remoendo o que se disse ou não, o que se fez ou não, carregando remorsos inúteis. Se a gente que fica só guarda o que foi bom, o que nos fez bem e nos fez sorrir, é lógico que quem parte leva consigo somente o que foi bom. O amor fica e vai junto, alimentando as memórias que nos fazem reviver todas as cores, os sons, os cheiros e vozes que nos tornaram o que somos – sobreviventes no amor. Amor que sempre está dentro de cada um, embora muitos resistam a enxergá-lo.

Enfim, nada como a maturidade para conseguirmos compreender, aceitar e agradecer tudo o que nossos pais fizeram por nós. Nada como o tempo, para trazer as verdades, apagar as dúvidas, consolidar o que foi bom e teve que acontecer para que chegássemos onde estamos. Eu não seria nem sombra do que sou hoje, sem essa estrutura, esse pilar que meus pais eram, agindo exatamente como agiram. Entender que eles deram o que podiam e foram o que possuíam dentro de si traz compreensão e gratidão. E agora, como pai, transmito toda essa riqueza afetiva que eles me deixaram, para que meu filho continue levando em frente esse sentimento tão essencial, que é o amor – sempre o amor.

Ser pai é amar cada filho exatamente pelo que cada um possui dentro de si. É chorar escondido, para permanecer fortaleza; é dizer não com o coração apertado. Ser pai é ser humano, é falhar, é errar também. É amor que continua, é luz que não se apaga, é eternidade afetiva. Ser pai é, sobretudo, entender o pai que tivemos.

Imagem de capa:  Ruslan Shugushev/shutterstock

Marcel Camargo

"Escrever é como compartilhar olhares, tão vital quanto respirar". É colunista da CONTI outra desde outubro de 2015.

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