Servidão Moderna: Escravidão e Alienação no Mundo do Trabalho

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“Mas o costume, que sobre nós exerce um poder considerável, tem uma grande força de nos ensinar a servir e a engolir tudo até que deixamos de sentir o amargor do veneno da servidão.”

— Discurso da Servidão Voluntária, Étienne de La Boétie.

Quando chegamos a momentos complicados dentro da história, muitas vezes é necessário olhar para trás para tentar compreender o que ocorre no presente, dado que a história nunca é algo pronto, mas algo que vai sendo construído a partir das inter-relações temporais.

Desse modo, ao analisar a situação do trabalho no mundo antigo, podemos traçar paralelos importantes que nos ajudam a melhor entender o que ocorre na contemporaneidade.

No mundo antigo, mais precisamente, no mundo greco-romano, o trabalho não possuía as mesmas condições e status que possui hoje, em um mundo industrial (ou pós-industrial). Enquanto na nossa sociedade podemos dizer que o homem se faz no trabalho, nas sociedades supracitadas esse processo se dava de forma diametralmente oposta, uma vez que a realização do homem enquanto ser estava ligada à sua esfera de liberdade e, por conseguinte, ociosidade.

Em outras palavras, o exercício da intelectualidade, das virtudes, do raciocínio e da cidadania estavam dissociadas completamente do trabalho, de tal maneira que para que uma parte pudesse gozar da sua “humanidade” nas cidades, outros tantos tinham que trabalhar, sobretudo, no campo.

Posto isso, percebemos que há um distanciamento enorme entre o exercício do trabalho e a esfera da liberdade, que é elemento imprescindível para que o homem possa gozar da sua condição humana.

Como nos diz o historiador Perry Anderson: “O divórcio entre o trabalho material e a esfera da liberdade era tão rigorosa que os gregos não tinham uma palavra em sua língua nem mesmo para expressar o conceito de trabalho, tanto como conduta pessoal, quanto como função social. O trabalho na agricultura e o trabalho artesanal eram supostas ‘adaptações’ à natureza, e não transformações dela; eram formas de serviço”. Os próprios filósofos da antiguidade, como Platão, viam o trabalho como algo alheio a qualquer valor humano.

O trabalho, assim, era visto como algo fora da essência humana, de modo que aqueles que trabalhavam (em larga medida, escravos) não precisam (ou não tinham) condições de participar e decidir sobre os destinos da polis, isto é, por meio do uso da cidadania.

É evidente que cada pensador é pensador no seu tempo, e cada construção social é uma construção social no seu tempo, entretanto, não se trata de fazer uma análise dessa conjuntura com olhos de um homem do século XXI, já que procedendo dessa maneira cairíamos em um anacronismo. Trata-se, então, de perceber o modo como historicamente o valor do trabalho e do trabalhador, manual, acima de tudo, foi construído.

A partir do momento em que se cria uma divergência inconciliável entre o trabalho e a liberdade, afasta-se por consequência a possibilidade do exercício do pensamento crítico, do questionamento e da cidadania. Essa divergência se dá porque, de fato, faz-se necessário certa “ociosidade” para que o indivíduo possua tempo hábil para refletir sobre necessidades da vida não associadas à sua manutenção orgânica, por assim dizer.

No entanto, o que se observa contemporaneamente é um processo em que existe cada vez menos tempo para que deliberações livres sobre a vida possam ser tomadas. Isto é, para que possa haver reflexão sobre as ações que se pratica ou se pretende praticar, e não somente a mera repetição automática e robótica de ações destituídas de qualquer crítica e capacidade reflexiva. Sendo assim, ao mesmo tempo em que o trabalho se tornou condição humana, houve também uma diminuição na esfera da liberdade e todas as consequências imediatas já levantadas no texto.

A partir disso, pode-se concluir, então, que os gregos estavam certos e que o trabalho e a liberdade são como água e óleo? Bom, acenar afirmativamente para essa problemática, apesar de tentadora, incorreria em uma aceitação e subserviência completa a uma organização social que se daria entre uma maioria esmagadora que trabalha e está com o seu pensamento alienado às normas impostas por uma minoria destinada a “tão somente pensar” e “coordenar a sociedade”.

Para os mais atentos, essa realidade que ocorreria ao findar para o lado afirmativo da questão não se restringe ao passado, tampouco, é obra de ficção. Ela é a nossa própria realidade e é por isso que essa ponte histórica é importante.

Ao estabelecer um regime de trabalho (em sentido amplo) extremamente mecanicista e uma relação com o tempo marcada pela fugacidade, o modelo social burguês ou industrial procurou afastar o trabalhador de condições próprias para que o exercício da sua individualidade, intelectualidade e cidadania pudessem ser exercidos.

Dessa forma, continuamos com um pensamento segregacionista em relação ao homem na sua vida social, sendo que, nesta quadra da história, a situação é ainda mais desumana e contraditória, posto que vivemos em um Estado Democrático de Direito (teoricamente) e, assim, todos os indivíduos deveriam receber condições de exercer a sua parcela de contribuição social, de forma ativa e crítica, fazendo jus à ideia de soberania popular.

Contrariamente, o que observamos é o estabelecimento cada vez maior de processos técnicos que ao invés de auxiliar o trabalhador, tornam este mais alienado ao tempo da máquina, leia-se, a todas as estruturas temporais do mundo industrial. Assim sendo, é preciso que nos compreendamos enquanto trabalhadores dentro desse modus operandi, não para ser uma peça “útil” dentro da engrenagem, e sim, como peça que consegue enxergar que a sua “utilidade” se restringe ao benefício de poucos que gozam do status de líderes sociais.

Como todo sistema bem montado, é óbvio que promover mudanças significativas são difíceis, até porque isso dependeria de uma vontade e esforço mútuos, o que se sabe que é tão difícil quanto a própria mudança. Todavia, se acreditamos que todo homem é capaz de pensar e agir livremente, então, não há outro caminho para a mudança que não seja o do incentivo à autorreflexão, analisando a história como um processo de continuísmos e rupturas, que em todas as épocas tiveram o povo como pano de fundo. É chegada a hora, portanto, de sair de trás das cortinas e adentrar ao centro do palco.

O trabalho colocado em sentido amplo no texto refere-se a todas as ações que dispomos para o seu exercício, como formação técnica e/ou acadêmica, aperfeiçoamentos, além das atividades que fazemos fora do trabalho, mas que se relacionam com o seu exercício e permanência no mesmo. Dessa maneira, o tempo do trabalho acaba sendo muito superior ao que aparece nas leis e/ou nos contratos de trabalho.







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