Engana-se quem pensa que Jean-Paul Sartre foi o amor maior ou o único amor essencial de Simone de Beauvoir. O escritor americano Nelson Algren despertou na escritora uma paixão arrebatadora que durou mais de uma década e a inspirou a escrever diversos livros.
Tão imensamente triste quando o amor se transforma numa poeira incômoda nos olhos. Uma poeira que não é outra coisa senão o resquício do que não foi, o que deveria ter sido; um grão de promessa não cumprida.
Tão imensamente desolador quando duas criaturas que se amam feito bicho se olham, mas não conseguem se perceber porque tudo o que desejam ver é o amor do outro e tudo o que temem é perder esse amor.
Tão imensamente insano e estúpido mastigar raiva, engolir frustração e depois vomitar falsa altivez quando tudo o que se quer é boiar como uma rã no ventre de um crocodilo após uma tarde de fomes saciadas.
Petite, Frenchie, Rã, Simone; Marido, Precioso Amado, Crocodilo, Nelson. Estes e outros apelidos amorosos de Simone de Beauvoir e seu amante americano Nelson Algren podem ser encontrados na biografia romanceada deste louco amor “Beauvoir Apaixonada” (Editora Verus), de Irène Frain (tradução de Marisa Rosseto).
Segundo Frain, seu livro é um romance inspirado em fatos reais, embasado em documentação de arquivos preexistentes: “Agi como o produtor de um dossiê, reunindo o máximo de elementos que se encontravam disponíveis ou documentos inéditos que eu mesma busquei com afinco para reconstituir o quebra-cabeça dessa relação fascinante”.
No decorrer das 334 páginas de “Beauvoir Apaixonada”, Nelson Algren sai da condição de “amante tímido” a que muitas vezes fora relegado para ser apresentado ao leitor como de fato parecia ser: grande escritor, sedutor irresistível, dotado de um humor devastador e admirável e ardente amante. Já Simone é apresentada não como o ícone que conhecemos, mas como mulher apaixonada que, igualmente a qualquer outra, soluça de desespero quando sente que está perdendo o remo da própria vida ao mergulhar nos olhos daquele que parece ter engolido a sua alma. Mulher apaixonada que chora por 48 horas seguidas quando seu amor se despede e sobe num avião e, em outra ocasião, escreve: “O que é longe? O que é um voo de 24 horas se você realmente quer ver o homem que ama?”
“Petite, como você pôde me desejar tanto tão depressa, tão rudemente e intensamente, na primeira noite, como jamais nenhuma mulher desejou um homem antes?” – escreve Nelson, após o primeiro encontro amoroso do casal em Chicago.
“Senti que minha vida me abandonava, minha velha vida com suas preocupações, suas fadigas, suas lembranças desgastadas (…) Eu não sabia que podia ser tão arrebatador fazer amor. O passado, o futuro, tudo o que nos separava morria ao pé da nossa cama. Que vitória!” – anota Nelson num de seus rascunhos.
As cartas foram, sem dúvida, o palco onde esse amor, atravessado pela distância (ela morando em Paris e ele em Chicago) e pelo relacionamento de Simone com Sartre, respirou:
“Meu querido, o quer que eu faça, quer eu trabalhe ou esteja bebendo algo, quer esteja sozinha ou com outras pessoas, você sempre está em meu coração” – dizia Simone numa das primeiras missivas.
Mais adiante, quando os laços pareciam indestrutíveis, escreveu:
“Não lhe darei trégua à noite, quero me assegurar de que você me ama realmente (…) É uma mulher completa que o deseja. Agora, não sou nada mais que esse ardente, orgulhoso, impaciente e feliz desejo de você”…
Foi na época em que viveram esse amor maior que o mundo, um amor de bicho, amor de criança que, Simone de Beauvoir, escreveu seus famosos livros “O segundo sexo” e o premiado “Os mandarins” (que conta a história do casal) e Nelson Algren alcançou fama e reputação com o premiado “O homem do braço de ouro” e “Chicago, City on the Make”.
Além dos encontros e desencontros amorosos do casal ao longo de catorze anos – bem romanceados, diga-se de passagem, por Irène Frain, que soube amarrar a narrativa com diversas reviravoltas e diálogos plausíveis e verossimilhantes – “Beauvoir Apaixonada” conta, também, com curiosidades como a repercussão negativa do livro “O segundo sexo” nas ruas de Paris na década de 50, a história das lendárias fotografias de Simone nua no banheiro, detalhes da traição consentida de Simone (seu marido Sartre chega a pagar passagens para que ela se encontre com o amante), bem como o ciúme que a imperatriz do existencialismo sentia de uma das amantes de Sartre, Dolores, a quem chamava carinhosamente de Maldita.
Acontece. É triste, mas acontece nos “romances com embasamento na vida real”.
Mais triste do que a impossibilidade de viver uma história a dois quando o amor é pungente? Somente a sensação de ter sido enganado. Confesso que chorei copiosamente lendo as páginas finais. Eis um trecho:
“No fim de seu livro, ela declarou que, agora que conhecia as leis da vida, tinha a impressão de que o mundo era uma promessa não cumprida. “Eu fui enganada”, concluía. Nelson teve a mesma convicção: ele tinha sido enganado. Não pela existência, mas por ela. Nunca mais lhe deu um único sinal de vida. Exceto pela imprensa. (…) No entanto ele não destruiu as cartas de Simone. Nem as fotos. (…) Ela tampouco destruiu as fotos ou as cartas dele. E conservou na mão o anel [ofertado por ele na primeira noite de amor] na mão”.
Sobre os efeitos colaterais do amor, Simone dissertou no capítulo A apaixonada, de “O
“Esse sonho de aniquilamento é, na verdade, uma ávida vontade de ser. Em todas as religiões, a adoração de Deus confunde-se para o devoto com a preocupação de sua própria salvação; a mulher entregando-se inteiramente ao ídolo, espera que ele lhe dê a um tempo a posse de si mesma e a do universo que nele se resume”. Aliás, ela abre esse capítulo com uma observação para lá de interessante:
“ A palavra ‘amor’ não tem em absoluto o mesmo sentido para um e outro sexo. E é isso uma fonte dos graves mal entendidos que os separam. Byron disse, justamente, que o amor é apenas uma ocupação na vida do homem, ao passo que é a própria vida da mulher”.
Ah o amor! O amor e seus equívocos. O que será que impediu, de fato, que Nelson e Simone tivessem consciência de que a história que viveram talvez tenha sido a única coisa verdadeira que experimentaram? Ou será que eles sabiam disso, mas achavam que só amor não bastava?
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matéria publicada originalmente em Obvious.
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