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Os tempos não são apenas líquidos, são também mais simples, mais fluídos, mais livres de formalidades, e nessa aparente liberdade muito sentimento se perdeu.
Não há muito tempo, ao final de cada ano, recebíamos algumas dezenas de cartões de Natal aos quais se presumia que haviam de merecer idêntica retribuição, pelos mesmos meios, e esse era sempre o bom e velho correio. Todo mundo recebia e todo mundo retribuía.
O carteiro vinha quase todos os dias de dezembro à minha casa e eu me desesperava vendo a pilha de cartões crescendo, alguns abertos, outros sem abrir porque não dava tempo, e porque abrindo um já se conhecia todo o conteúdo dos demais. Bastava ler o nome do remetente e, dali mesmo, despachar a resposta protocolar.
Era trabalhoso, mas era preciso providenciar cartões de resposta para todos que gastavam o seu tempo indo até à livraria, escrevendo algumas poucas palavras, endereçando o envelope, enfrentando filas de fim de ano para a postagem no correio, afim de que seus votos de boas festas pudessem chegar às nossas mãos.
Era a hora do caminho inverso, todos tínhamos que fazer o mesmo. Era impensável não retribuir. Alguns de nós o fazíamos na última das últimas horas, apenas para nos desvencilharmos da obrigação.
Havia ainda aqueles que enviavam algum presente junto com o cartão, um panetone, um vinho, uma compota, algumas bolachas feita em casa embrulhadas em saquinhos de pano xadrez, e também tínhamos que retribuir a esses e aqueles que, por conta da gentileza mereciam idêntico tratamento.
Verdade seja dita: só me lembro de ter feito retribuições. Nunca foi minha intenção estimular o comportamento pré natalino que sempre me pareceu muito formal e rígido, mas por força das convenções, era assim que tinha que ser.
O tempo passou e hoje, com o advento das relações virtuais, todos os votos feitos em papel foram transferidos para o mundo dos bytes. Todos os cartões que entulhavam as nossas mesas, foram parar em nossa caixa de e-mails, em nosso perfil na rede social. As lembrancinhas cheirosas, coloridas, saborosas, foram substituídas pelas representações gráficas de seu conteúdo.
Já não se faz um pré Natal como antigamente. Desde o advento da internet não me lembro de receber nenhum cartão, nenhum presente, nenhuma coisa feita pelas mãos do doador, e por conta disso o mês de dezembro ficou mais vazio e sem muito significado. E não só dezembro, mas todos os meses do ano.
Os ramalhetes de flores que chegavam nas datas do nosso aniversário já não chegam mais. As entregas tornaram-se raras. As visitas também. Tudo agora é instantâneo e distante, tudo é apenas representativo, e ainda assim recebemos cumprimentos em tempo real, e em número muito maior.
Se alguém tinha 50 amigos, hoje pode facilmente ter 5.000. E ainda que a maioria não se lembre, os poucos que se lembram inundam a nossa caixa de emails, e os nossos perfis nas redes sociais, com desejos de felicidade, nos fazendo acreditar que somos amados e lembrados. Parece tudo muito bem resolvido. Só que não. Falta alguma coisa.
Não há mais marcos de celebração envolvendo as nossas vidas, não há mais caixinhas para guardar os cartões inúteis que somados, simbolizavam o nosso histórico de relacionamentos e de sentimentos, a prova viva e concreta dos nossos tratados individuais de amor e de paz.
Não há mais lugar para a materialização do amor abstrato. O amor que sempre necessitou de substantificação, tornou-se mais abstrato do que nunca porque não custa quase nada do muito pouco que custava antes. Era pouco, mas aquele pouco se apresentava e nos acompanhava durante toda a vida, como marcos de celebração.
Tenho até hoje muitos cartões guardados. Tenho os cartões do meu casamento, de Natais, e de aniversários. Amarelados, eles representam uma lembrança concreta de um amor eficaz. São símbolos de amizades que fiz, de relações que estabeleci, e alguns desses me recordam pessoas que não estão mais entre nós. Ficaram as suas mensagens com letras escritas a mão, última lembrança irrefutável de que se importaram conosco, enquanto viveram. E de que viveram.
Não tenho coragem de me desfazer desse acervo. Minhas filhas terão que faze-lo por mim.
Vivemos tempos simplificados. Cada vez se simplifica mais a vida e seus elementos protocolares. Quantas coisas mudaram, quantos costumes foram descartados, quanto se perdeu, e quanto se deixou de ganhar! Eu que sempre relutei em cumprir protocolos me vejo agora um pouco nostálgica.
Abri os meus cartões de dez Natais passados,na terça feira de carnaval, em pleno mês de fevereiro, e me descobri saudosa da exatidão fraternal cronometrada. Quem era meu amigo no Natal era amigo na data do meu aniversário. Era amigo de dezembro a dezembro. Mais que uma sequência havia uma consequência. Havia correspondência verdadeira. Havia continuidade. Havia reciprocidade. Havia lógica. Havia o conteúdo simbólico tão necessário para nos fazer sentir que pertencíamos uns aos outros.
Eu não sei onde essa simplificação nos levará. Eu só sei que sinto saudades dos cartões de linho, materializando a boa vontade dos homens na terra. Era apenas papel, mas era também Papai Noel com seu trenó, galhinhos verdes, guirlandas de flores, renas, a imagem de Jesus na manjedoura, a mãe de Jesus, os animais, os reis magos, o amor, a alegria, a fé, a esperança da vida eterna, e a certeza de que tudo era parte de um grande propósito universal que dava sentido à existência.
Hoje temos bytes. Temos imagens. Temos muito material áudio-visual. Não é preciso um grande esforço para resgatar a memória. Mas ainda assim falta passado nesse presente imperfeito, falta o rastro da palavra escrita, falta um roteiro sentimental que possamos segurar nas mãos como arquivo seguro.
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