A gente não devia, mas vai se acostumando. Vai se acostumando a ficar parado, a não se incomodar, a achar que não há nada que possa ser feito, a aceitar que o mundo sempre foi assim e que não há saída. A gente não devia, mas vai se acostumando.
Vai se acostumando a aceitar os desmandos, a exploração como um processo inexorável, a corrupção como insuperável. A gente não devia, mas vai se acostumando. Vai se acostumando a calar, até que o silêncio ecoe pelos quatro cantos a nossa indiferença.
Ítalo Calvino disse que: “O inferno dos vivos não é algo que será: se existe um, é o que já está aqui, o inferno em que vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Há duas maneiras de não sofrê-lo. A primeira é fácil para muitos: aceitar o inferno e se tornar parte dele a ponto de não conseguir mais vê-lo. A segunda é arriscada e exige vigilância e preocupação constantes: procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não são inferno, e fazê-los durar, dar-lhes espaço”.
Diante do exposto, é sabido que conformar-se é sempre uma saída mais cômoda. Somos frágeis, precários, e na maior parte do tempo sequer damos conta de nós mesmos, de tal modo que imaginar ser possível mudar o mundo a partir das nossas ações parece loucura. Sendo assim, preferimos nos acostumar com a realidade, aceitando-a como um processo tal como é, sem qualquer possibilidade de modificação. E, então, como ninguém se incomoda, o inferno permanece sempre mais vivo, alimentando-se da nossa covardia e indiferença.
Entretanto, embora não acreditemos ser capazes de alterar o nosso meio, esperamos que essas modificações possam vir de outras pessoas, sobretudo, quando o inferno que alimentamos trata de nos causar queimaduras. Paradoxal? É sempre mais fácil acreditar na existência de heróis do que arregaçar as mangas e tentar fazer algo. É sempre mais fácil se manter na zona de conforto do padrão da conformidade do que assumir a condição louca da mudança, pois lembrando Kerouac – “[…] as pessoas que são loucas o bastante para pensarem que podem mudar o mundo são as únicas que realmente podem fazê-lo”.
Assim sendo, ainda que a nossa condição seja de fato precária e não tenhamos controle sobre quase nada, há possibilidade de mudar o mundo a partir de nós mesmos. No entanto, como ressalta Calvino, essa escolha necessita de coragem e esforço para que fujamos das labaredas, para que sejamos a luz a que os poetas às vezes dão o nome de esperança, para que sejamos loucos, inadequados, inconformados, para que tenhamos a coragem de sempre fazer algo e mais coragem ainda para acreditar que esse algo que incomoda, essa revolução interior é a maior que pode existir e é a única que de fato pode dar espaço àquilo que não é inferno no meio dele, já que como lembra Joseph Brodsky:
“Eu não acredito em movimentos políticos. Acredito em movimentos pessoais, ao movimento da alma, quando um homem olha para si mesmo e está tão envergonhado que tenta fazer algum tipo de mudança – dentro de si mesmo, não do lado de fora”.
Ou seja, a mudança no mundo externo depende da nossa mudança interna. Depende da forma que nos enxergamos como parte do problema, como parte do inferno, ao passo que buscamos, por meio do nosso eu, ser a mudança que queremos no mundo, ser o que não é chama no meio do fogo. Antes de arrumar o quebra-cabeça maior é necessário arrumar o nosso quebra-cabeça, pois quando a gente arruma o homem, consequentemente, nós arrumamos o mundo ou como diz um pensador chamado Gabriel – “Quando a gente muda, o mundo muda com a gente”.
Podemos não ter o melhor dos mundos, mas um mundo melhor depende da forma que nós lutamos por ele. Para isso é preciso vigilância e preocupação constantes como diz Calvino, loucura como lembra Kerouac e vergonha como atenta Brodsky, porque por mais que as condições sejam adversas, sempre há o que pode ser feito. E mesmo que isso seja pouco, não importa, porque à luz de Thoreau, um “louco” no seu tempo: “Um homem não tem que fazer tudo, mas algo, e não é porque não pode fazer tudo que precisa fazer este algo de maneira errada. Pois não importa quão limitado possa parecer o começo: aquilo que é bem feito uma vez está feito para sempre”.
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