Categories: Sem categoria

Sobre a aversão à diferença, o racismo e a xenofobia

Por João Carlos Viegas

Por estranho que pareça abordar o racismo e a xenofobia a partir do momento do nascimento, é assim que farei. O nascimento biológico e o nascimento psicológico, como é sabido, são processos de natureza imbricada mas distinta, sendo que o primeiro não coincide temporalmente com o segundo.

Efetivamente, o corte do cordão umbilical, que assinala o momento da separação biológica total, não coincide com o sentimento de existir em estado separado dos objetos do meio externo circundante, no seio do qual se destaca necessariamente o objeto materno, em relação ao qual a separação biológica acabou de suceder.

De facto, o nascimento biológico introduz uma fase de relação simbiótica inaugurada por um estado inicial e transitório de indiferenciação sujeito-objeto. Funda-se aqui, neste ambiente indiferenciado, a omnipotência narcísica primária, bem ilustrada no sentimento de que o seio se encontra sob o controle mágico e omnipotente do sujeito, pois surge sempre que ele o quer, sempre que dele necessita, na sua continuidade psíquica, indiferenciado da sua vontade.

Contudo, rumo a um estado de diferenciação para o qual aponta, como se sabe, o desenvolvimento dito normal, esta omnipotência narcísica de base será permanentemente perturbada e questionada por pequenas ameaças de perda, gradualmente introduzidas em proporções toleráveis, no contexto de uma relação de amor que propiciará a segurança necessária para aceitar, sem tensões excessivamente perturbadoras, o impacto dessas frustrações e o almejado estado se separação ulterior.

Na verdade, certo é que nenhum de nós aceita de animo leve o culminar deste processo de perda, ainda que lento e gradual, da omnipotência narcísica primária. A já tardia angustia do oitavo mês, também chamada angústia do estranho, momento em que a criança começa a reagir mal a todos os objetos estranhos, recusando o contacto com eles, assinala bem a força das resistências com que aceitamos tal perda.

Esta angústia coincide pois com a aquisição da capacidade de perceber o objeto (a mãe) como separado de si e claramente distinto dos restantes objetos do meio, que então passam a ser sentidos como diferentes, estranhos e ameaçadores, prenúncio de não-mãe, prenuncio de perda-separação, qual omnipotência narcísica. Emerge aqui, portanto, pela primeira vez no mundo psíquico da criança, a aversão ao diferente (ao estranho), sentido como inquietante e mesmo ameaçador.

O que é estranho e diferente é mau, eis aqui o protótipo ou substrato precoce e fundamental dos sentimentos de aversão à diferença e, portanto, dos sentimentos rácicos e xenofóbicos. A educação aliada aos condimentos culturais de cada sociedade, permitirá depois a reorganização mental desta posição, que pode percorrer um espectro que vai desde a sua neutralização, até às configurações mais radicais e fundamentalistas, que então atribuem ao maniqueísmo inicial (do diferente vem o mal, do familiar vem o bem), um carácter verdadeiramente moral, quase sempre religioso.

Mas compreendemos também que a neutralização deste medo (ou aversão) e a integração desta visão clivada e maniqueísta do mundo, pressuposta na equação simbólica diferente = mau, depende fundamentalmente da possibilidade de, paralelamente à percepção da diferença, sempre sentida como inquietante e em algum grau ameaçadora, o amor do objeto poder ser sentido e interiorizado como absolutamente seguro e incondicional, portanto, persistente, resistente, nunca estando ameaçado; venha então o diferente, o estranho e o desconhecido, com os quais o sujeito poderá vir a ter uma relação tranquila, pacífica, saudável e prazerosa.

Mas, pela parte que nos toca, para falarmos de nós ocidentais, vivemos presentemente em sociedades sustidas em berçários traumatizantes e embutidas de objetos de amor estafados, acorrentados a tarefas ingratas, emocionalmente desgastados e marcadamente indisponíveis, qual incondicionaldade do investimento do objeto de amor.

Neste contexto geral, aqui superficialmente abordado, o processo de perda-separação e diferenciação a que anteriormente aludi, tende então a ser perturbado, não por pequenos sentimentos de perda, gradualmente introduzidos em proporções toleráveis, mas sim por verdadeiros atentados traumáticos à necessária homeoestase psíquica, que deveria ser propiciada pela estabilidade da relação e pela disponibilidade incondicional do investimento amoroso.

Portanto, o processo em questão passa a ser perturbado por verdadeiros atentados à omnipotência narcísica de base, então sentida como perdida de modo abrupto e destrutivo. Eis que a aversão à diferença assume agora as repercussões do ódio — O ódio ao outro, ameaçador porque diferente, estranho e desconhecido (não familiar), prenúncio de separação, de não-objeto, presença que teimará em reativar no futuro a revivescência projetiva dos traços mnésicos da perda vivida como uma rutura brusca e destrutiva.

Efetivamente, uma grande parte de nós sai do colo em muito más condições para aceitar e integrar pacificamente o mundo de diferenças em que todos vivemos. Mal preparados, para muitos entre nós o diferente (o estranho) será sempre sentido como uma presença intrusiva que ameaça e atenta contra a integridade psíquica.

Os grupos fundamentalistas que recrutam entre nós e tanto nos preocupam hoje, cujo fanatismo religioso é cultivado em torno do substrato inicial desta aversão à diferença, não encontram na miséria social o seu nincho de recrutamento, como por vezes se diz, encontram-no sim na vulnerabilidade narcísica traduzida ainda na ânsia do reencontro com o igual, o duplo indiferenciado, a omnipotência narcísica perdida: a religiosidade intrínseca, a conexão ao sublime-divino. Omnipotência narcísica esta, perdida mas nunca aceite como tal, dado o embate destrutivo, sobre a imaturidade funcional e afetiva do psiquismo do sujeito, do modo como foi proposta.

João Carlos Viegas

Psicólogo Clínico Psicanalítico, ex-docente universitário de Psicanálise e de Técnicas Projetivas, presentemente trabalha exclusivamente em clínica privada - Psicoterapia Psicanalítica. É director clínico do site de atendimento psicológico online: Psiconline.pt - Serviços de Psicologia e Saúde Online.

Recent Posts

Saiba o que é o “namoro solo”, a nova tendência da Geração Z

Uma nova tendência entre os jovens da Geração Z vem ganhando força e gerando polêmica:…

2 horas ago

Mãe expõe áudios de filha que foi abandonada pelo pai: “Nunca te fiz mal, pai”

Em mensagens de cortar o coração, a menina deixa evidente a falta que o pai…

8 horas ago

Mulher que teve experiência de quase morte detalha visão assustadora que teve ao ‘deixar seu corpo’

Cirurgia radical levou paciente ao estado de morte clínica, revelando relatos precisos de uma “vida…

10 horas ago

Agnaldo Rayol falece de forma trágica aos 86 anos e deixa legado na música brasileira

O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, faleceu nesta segunda-feira,…

1 dia ago

Padre causa polêmica ao dizer que usar biquíni é “pecado mortal”

Uma recente declaração de um padre sobre o uso de biquínis gerou um acalorado debate…

1 dia ago

A triste história real por trás da série ‘Os Quatro da Candelária’

A minissérie brasileira que atingiu o primeiro lugar no TOP 10 da Netflix retrata um…

1 dia ago