O inconsciente concebido do ponto de vista da bioquímica dos processos cerebrais não pode, como aliás se tem mostrado óbvio, dar conta do campo da significação (assim como das suas falhas e lacunas), abrangido pelo inconsciente psicanalítico. Apenas um deficitário conhecimento deste segundo campo, pode permitir formular a hipótese contrária.
Estará a querer enganar o mundo, quem afirmar que conhece o cérebro, aquela insondável nebulosa (na qual, na verdade, estamos ainda muito perdidos), ao ponto de poder compreender a complexidade dos processos em questão, pois o conhecimento existente sobre os processos cerebrais não dá para sondar nem de muito longe, o campo mental da significação inconsciente, explorado pela psicanálise.
Na verdade estamos mesmo a “anos luz” de distância de uma tal integração do conhecimento. Parece-me muito bem que continuemos a tentar reduzir cada vez mais essa distância, mas o que a ciência não pode é dizer que já lá chegou, nem que está lá perto, pois para tal afirmar, como saberão, teria que atropelar os seus próprios princípios, rígidos e rigorosos, de verificabilidade metódica experimental.
Afinal de contas é nesta ótica da verificabilidade experimental que a ciência sempre excluiu do campo dos seus objetos de estudo, o inconsciente psicanalítico; e até à data não se encontra em condições de fazer outra coisa, pois essa outra coisa exigiria reformulações epistemológicas que são contra a sua própria natureza fazer.
Neste estado de coisas, a tentativa de assimilar o inconsciente à bioquímica dos processos cerebrais – um inconsciente cerebral geneticamente transmitido, alojado num cérebro sem mente –, corresponde precisamente à tentativa de aplicar à psicanálise, da qual o inconsciente é o principal pilar, um derradeiro golpe de graça, concedendo-lhe um lugar no qual tombará destituída de si mesma, vendo radicalmente perdida a sua especificidade e a sua identidade própria, para sucumbir subordinada à ditadura do conhecimento advogada pelo método único, vislumbrando-se então mais de perto, no horizonte desimpedido de obstáculos, aquele distópico “Admirável Mundo Novo”.
Neste sentido, se bem me faço entender, a neuropsicologia e a neuropsicanálise, que a tantos psicólogos e psicanalistas fascinam, podem ser efetivamente mobilizadas como ardilosas armadilhas (e digo podem, não que o sejam necessariamente).
Perante isto, encarando de frente as tendências dos nossos tempos, resta-nos o alívio de saber que, dada a sua natureza inexorável, o conhecimento jamais se deixará subordinar a um continente restrito (um método único), que lhe imponha limites que não lhe cabem; e estamos cá para o lembrar, tantas vezes quantas forem necessárias.