A ideia que melhor define o conceito “pulsão”, tal como nos foi proposto por Freud, é a ideia de um retorno a um estado anterior. Esta, contudo, passa predominantemente desapercebida na generalidade das utilizações que se fazem do conceito. Na verdade a pulsão é predominantemente entendida como um ímpeto inconsciente para um movimento dinâmico que nos propõe o avanço no sentido de um determinado alvo; e raramente como uma força-movimento de retorno a um estado de coisas anterior. Contudo, a força da pulsão reside precisamente nesta última tendência, sendo que, uma vez levada ao limite da sua finalidade (ou à condição mais remota a que se pode recuar), este estado para o qual a pulsão tende, é um estado anterior à vida, ou seja, é um estado eminentemente anorgânico. A morte é, por assim dizer, coincidente com um retorno. Existirá, portanto, nesta perspetiva, uma tendência para um retorno ao nada, que é o ímpeto da pulsão de morte, que se traduz, do ponto de vista psíquico, na tendência inconsciente para um estado cada vez mais pleno de ausência de tensões.
Hoje em dia, ocupando cada vez mais espaço nas emergências culturais do mundo ocidental (e não só), assim como um lugar de relevo antagónico, relativamente às tensões da vida mundana, assistimos ao advento ocidentalizado do budismo hinduísta (um género de avanço que não deixa de nos evocar um retorno), patente na afirmação da sua radical essência, contraposta ao ruido consumista-individualista de uma perturbadora pós-modernidade: a procura de quietude, cujo fim último resultaria numa infinita felicidade, atingida pela fusão com a alma coletiva, através do aniquilamento da individualidade e das manifestações do desejo próprio. Neste ponto, tendo em conta que, como espero ter ficado claro, proponho o recurso a duas interpretações do Nirvana, fundamentadamente distintas – a psicanalítica (de Freud) e, por último, a hinduísta-budista (a original) –, são contudo as incontornáveis similaridades existentes entre elas, que nos remetem para um campo de reflexão eminentemente atual, que na verdade é intemporal.
Voltando então à interpretação freudiana eu diria mesmo que, com legitimo fundamento, surpreendentemente para muitos, reconhecidamente para outros, o princípio de Nirvana, que subscreve a tendência do organismo para a ausência total de tensões, não veio à obra de Freud para pouca coisa, veio sim para partilhar o trono com o princípio do prazer, para não dizer destroná-lo, pois no fundo passou a ser este outro princípio (o princípio de Nirvana), o que melhor representa a mais irredutível das forças pulsionais atuantes no organismo vivo, não fora ela a que no fim (no limite do movimento de retorno), sempre vence: a pulsão de morte. Na verdade, como saberão, Freud assimilou o prazer à redução das tensões penosas e, finalmente, à redução das tensões ao nível zero, ponto em que a teoria da dualidade pulsional se harmoniza finalmente, na assimilação do prazer ao princípio de Nirvana.
Este princípio seria ainda um princípio para além do homem, pois estaria presente em todos os organismos vivos, mesmo nos mais primitivos. Por outro lado, seria sempre muito difícil fazer prova direta da sua ação, pois ela estaria predominantemente disfarçada pelas forças que conservam a vida. Esta conceção especulativa (sem possibilidade de provação cientifica, mas para a qual Freud considerou encontrar suficientes evidencias clínicas), acabou por ligar indissociavelmente qualquer desejo agressivo ou sexual, ao desejo de morte, na mesma medida em que o princípio de Nirvana, representado pela pulsão de morte, traduzia o que de mais irredutivelmente pulsional existia no organismo.
Esta é, de acordo com a segunda tópica freudiana, a grande questão do inconsciente (todas as outras orbitam necessariamente em torno dela), enquanto contido na noção “Id”. Mas, efetivamente, pouco se tem refletido sobre isto, pouca atenção se tem dado a este Freud especulativo, pelo menos na praça da “psicanálise suave e utilitária”. Neste âmbito, fica aqui esta minha leitura de Freud, sobre o mais radical princípio regente da vida psíquica, que expressa a silenciosa tendência da pulsão de morte, sempre dissimulada pelas forças que conservam a vida, que então de tantos modos nos envolve e alicia, até porque, para bem, a pulsão de vida é impelida e destinada a procurar dançar harmoniosamente com o seu par (a pulsão de morte). Mas, como é fácil observar, este é um par que nem sempre se afina, esta é uma dança que nem sempre sabemos dançar…
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