Sobre o Coringa, ainda e mais

De tanto que falei do filme, fui convidada por um colega da psicanálise para fazermos um debate sobre o tão aclamado Coringa. Virou motivo de chacota o fato de eu ter ido três vezes ao cinema, até para mim, que nunca tinha ido mais de uma vez para ver a mesma coisa. Então, enquanto pensava no que falar durante o debate, para além daquilo que já havia escrito, pensei: mas por que diabos tive que ver três vezes, perigando ir a quarta vez?

Quando criança, eu tinha medo de palhaços. Claro que na época não entendia, mas depois, pensando e pensando já adulta, me parece que a figura de um palhaço é triste porque carrega um sorriso forjado e, ao mesmo tempo, uma lágrima, que está desenhada para expor a contradição entre o imperativo do riso enquanto o que se quer, no fim das contas, é chorar. Afinal, qual é a graça?

Na adolescência, meu livro favorito se chamava O dia do curinga (Jostein Gaarder – o mesmo autor d’O mundo de Sofia). Também tive que ler pelo menos umas três vezes, não porque fosse difícil de entender, mas porque em cada releitura podia enxergar coisas que não tinham sido possíveis antes. Trata-se da história de um menino em uma viagem com o pai, e o que motiva a viagem é a busca pela mãe/esposa que os deixou quando o filho tinha quatro anos e saiu pelo mundo para se encontrar. Lá pelas tantas da viagem, Hans-Thomas ganha uma lupa e um mini-livro, temos então uma história dentro da história e, obviamente, ambas estão entrelaçadas. Em uma ilha, um marinheiro náufrago vive sozinho por muitos anos até que as cartas do baralho que carregava numa caixinha de madeira ganham vida em forma de anões, cada um com seu naipe. Tudo está em perfeita ordem quando chega o Curinga. Cito um trecho:

Todas as cinquenta e duas figuras eram diferentes, mas tinham uma coisa em comum: nenhuma delas jamais perguntou quem era ou de onde tinha vindo. E por agirem assim, todas viviam em perfeita harmonia com a natureza à sua volta. Elas apenas viviam suas vidas dentro desse jardim exuberante e, como os animais, estavam íntima e despreocupadamente ligadas a ele…Até que chegou o Curinga. Ele se infiltrou no povoado como uma cobra venenosa. (…) Ele não apenas usava roupas engraçadas com guizos nas pontas, mas também não pertencia a nenhuma das quatro famílias, a nenhum dos quatro naipes. E, para completar, conseguia irritar os anões fazendo-lhes perguntas que não eram capazes de responder. (GAARDER, 1996, p. 210).

O Curinga, ou Joker, representa esta figura que faz questão, enquanto as outras cartas vivem sem que precisem fazer perguntas. No filme, há uma transformação de Arthur, esse “garotinho feliz”, de palhaço a joker. Enquanto palhaço, bem ou mal, ele se monta/desmonta e causa riso com suas palhaçadas, mas é alguém que está para ser batido, espancado, achincalhado. Ao fim do dia, remove-se a maquiagem, tira-se a peruca, roupas e sapatos, volta-se a ser triste. Enquanto Coringa/Joker, Arthur é a própria piada, uma piada que não tem graça. Há algo de identidade que passa a compô-lo. Não mais a peruca, mas o próprio cabelo pintado de verde. A maquiagem até por dentro da boca. A dança, o andar confiante, algo que lhe atravessa o corpo, uma verdade que vem à tona.

Arthur não pôde ser ouvido, primeiro por sua mãe (seja por ter sido tomada pela loucura [?], seja pela obsessão por um homem que não quis assumi-la, nem a seu filho). Começa aí a posição de Arthur como este objeto que resta espancado, recusado pelo pai, batido pelo(s) padrasto(s), cujo grito não é ouvido pela mãe. A posição do sujeito se repete na vida. Apesar de não se lembrar dos maus-tratos na infância, segue na vida sendo espancado gratuitamente por ser quem é: um cara estranho que tem um “distúrbio” de riso involuntário. Será coincidência que haja um sintoma assim para alguém que “veio ao mundo para trazer riso e alegria”? Também segue não sendo ouvido pelo patrão, pela assistente social, dentre outros. É uma voz que não tem lugar para o Outro.

Ao saber (como se tomasse um remédio amargo) de sua história, matar a mãe no real, ou seja, fazer uma passagem ao ato, é a saída que encontra para deixar a posição de objeto e colocar-se minimamente como sujeito. Arthur passa a ser visto, a ter uma ex-sistência, a custo da violência e não da elaboração. Sua passagem de palhaço a Coringa não tem como objetivo fazer um levante social, uma revolução de cunho político. É uma transformação que ocorre no nível micro, das primeiras e primordiais relações desse sujeito, mas o que ele reclama é para si, sua filiação, seu lugar. Arthur está matando a mãe, este primeiro Outro no real. Seria preciso fazer metáfora para que esta concretude pudesse ter sido ultrapassada. Que os outros o tenham como símbolo de uma revolução, trata-se de um deslizamento que já não lhe diz respeito.

Tanto no livro O dia do Curinga quanto no filme de Todd Philips, há uma questão com a mãe. No livro, um menino em busca de encontrar a sua, no filme, ao encontrá-la (saber quem ela realmente é e que mentiras carregou), há o deparar-se com o horror e a violência de quando não se é nada para o Outro.

A trilha sonora (que só pude reparar na terceira vez que fui ao cinema e por causa de um comentário que li na internet) remete ao imperativo da felicidade. Smile!!

Em outro comentário, de um psicanalista também, me deparei o com o tocante fato de que Joaquin Phoenix, aos 19 anos viu morrer de overdose em seus braços o irmão (também ator) River Phoenix. Foi ele quem ligou para o socorro enquanto seu irmão agonizava em um beco, como na cena do começo do filme, na qual é espancado por garotos e resta caído num beco. Há algo pungente na atuação de Phoenix que ultrapassa tudo o que é esperado. O artista finge sentir a dor que deveras sente.

Quanto à questão do “somos todos Coringas”, posso afirmar que não é Coringa quem quer. O Coringa é uma carta extra, que está fora do baralho, mas que pode causar um rebuliço e mudar as regras do jogo. Como Jostein Gaarder diz em seu livro: “somos bonecos vivos”, e o Coringa é a única carta que sabe disso.

Obs. 1: Agora juro que eu paro.

Obs. 2: Até a minha próxima ideia fixa.

Referência:

GAARDER, J. O dia do Curinga. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.







Isloany Machado - Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de MS. Revisora de textos na Oficina do Texto. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção. Autora dos livros Costurando Palavras: contos e crônicas (2012), Em defesa dos avessos humanos: crônicas psicanaliterárias (2014) e do romance Nau dos Amoucos (2017). Mãe do Adriano.