Sobre a vida depois de um relacionamento abusivo

Por Nathalia Ilovatte – 02 Janeiro 2018, Medium

Levou quatro anos para que eu assimilasse o estupro que eu sofri. Para que eu deixasse de jogar terra por cima desse episódio a cada vez que ele ameaçava emergir na minha memória, e para que eu enfim olhasse diretamente para ele e conseguisse dizer, sem medo, culpa e vergonha: foi estupro.

Aconteceu dentro de um relacionamento abusivo que vivi por alguns meses e nem sei como consegui colocar um ponto final. Quando entrei pela última vez na casa dele para dizer que ia embora, eu estava morrendo de medo.

Fingi estar triste, como se ainda gostasse dele, deixei que encostasse em mim, apesar do nojo, e abri mão de algumas roupas e livros porque temia que, se começasse a juntar minhas coisas, ele assimilaria que a despedida era definitiva, se sentiria confrontado e tentaria me impedir. Do jeito dele.

Àquela altura eu já havia enxergado que estava presa em um relacionamento abusivo. Ele já havia me dado um tapa na porta de um bar, por eu ter saído na frente dele. Já havia gritado comigo e me humilhado inúmeras vezes, por qualquer motivo que para ele parecesse plausível, como eu ter citado um amigo homem em uma conversa sobre trabalho, ou eu ter pintado as unhas, ou ter saído da aula no horário que deveria sair, mas que ele julgou ser muito tarde. Ele já havia me impedido de encontrar minhas amigas, de dormir na minha casa, de estudar. É claro que ele não me proibia de nada, mas jogava com a culpa: eu dava toda a minha atenção ao trabalho, aos estudos, a qualquer coisa, menos a ele, pobre coitado que estava cansado de ser preterido. Era sempre um misto de mágoa e raiva que apertava meus botões de culpa e, embora esses eu tenha demorado mais a admitir, os de medo também.

Eu passei a planejar minhas ações para agradá-lo, porque, a princípio, queria que a gente ficasse bem. Mas, lá no fundo, o que eu queria mesmo era evitar que ele explodisse em outro surto desmedido de raiva, porque eu tinha medo de todas aquelas acusações que eu nem sabia de onde vinham, tampouco aonde iam levar.

Assim os meses se passaram e eu fui me atolando mais e mais nesse jogo, até o dia em que ele já estava em cima de mim quando eu pedi para parar, e ele ignorou. Eu disse que estava passando mal, ele respondeu “azar o seu”, e continuou. Até o fim.

Na mesma semana, eu precisava sair porque tinha aula, e ele não queria que eu fosse. Reclamou, me acusou de ser má para ele. Eu peguei a bolsa e ele ficou na frente da porta. Segurou meu braço e me empurrou. Puxou a minha roupa. Eu falei não. Eu tenho certeza que falei não. E ele deu risada. Continuou. E doeu. Eu lembro da dor e de ele dizer algo como “isso é para você aprender”. Depois, falou que foi só uma brincadeira, nada de mais. Por que eu estava reclamando?

Eu não consegui gritar, nem chorar, nem bater ou sair correndo. Eu queria fazer tudo isso, mas me sentia tão fraca, impotente e sem valor, que fiquei inerte.

Eu não sei como achei coragem para terminar. Quando lembro que entrei na casa dele para fazer isso, nem acredito. Seria muito mais seguro terminar por mensagem, mas ainda havia em mim um resquício de vontade de enxergá-lo como um namorado normal e de agir “corretamente”. Afinal de contas, eu não me permitia, e nem me era permitido, errar.

Eu lembrava de notícias de feminicídios e de como algumas vítimas pareciam ter despertado a ira do agressor ao bater de frente com ele. Era a única informação que eu tinha para lidar com essa situação e eu acho que foi isso que me salvou.

Eu saí pela porta devagar, sem fazer alarde. Acho que eu dei a sorte de pegá-lo em um dia bom, daqueles em que ele tentava me agradar. Ele me pediu para deitar na cama e eu fiquei por longos minutos imóvel, torcendo para aquilo acabar logo, a angústia me revirando o estômago.

Ele só me abraçou, dessa vez. Eu já sentia muito nojo dele e aqueles braços em mim pareciam doer. Mas eu engoli a vontade de gritar para tirar aquele corpo imundo de perto de mim e me deixar em paz para sempre porque a minha paz nunca havia estado tão perto, mas eu sentia que a qualquer mínimo deslize eu poderia perdê-la. Então eu me despedi devagar, disfarçando meu ódio. E saí.

Pelo corredor sentia as pernas bambearem e um medo sufocante de a mão dele puxar meu braço e me impedir de ir. Medo do portão não abrir. Medo de ser seguida na rua. Eu não me lembro até quando eu senti medo, mas tempos depois um amigo em comum me disse para ter cuidado porque havia conversado com meu ex-namorado e ele parecia obcecado pela ideia de “me ter de volta”.

Fiz anos de terapia. Falei sobre meu relacionamento ruim, meu padrão de abusos psicológicos, meu medo, minha impotência, minha culpa. Minha necessidade de agradar, de ser uma boa menina, e por isso deixar que tripudiassem em cima da minha cabeça, e que me punissem quando eu não atendia às expectativas. Mas não falei uma palavra sobre os estupros. Eu sequer os nomeei estupros, até aqui.

contioutra.com - Sobre a vida depois de um relacionamento abusivo
Mujer saliendo del psicoanalista, Remedios Varo

A culpa por eu ter escolhido aquela pessoa para namorar, somada à vergonha por eu ter ficado ao lado de alguém tão escroto, mesmo depois que os abusos começaram, me motivaram a deixar esse pedaço da minha história intocado por um bom tempo. Eu achava que a culpa era minha, e esse pensamento era tão forte quanto irracional. Racionalmente, eu tenho plena consciência de que uma vítima nunca é culpada pelos abusos que sofre, e que abusadores têm o poder de confundir e manipular as vítimas para que elas acreditem que causaram sozinhas aquela dor.

Mas eu vivi anos imaginando que as minhas experiências horríveis de abuso eram alguma outra coisa menor, menos grave. Um exagero meu. Porque ele nunca me deixou hematomas. Porque a gente namorava. Porque eu escolhi frequentar a casa dele. Porque ele dizia que me amava. E porque ele simplesmente não se encaixava no meu estereótipo de estuprador. Eu conhecia a mãe dele, ela era um amor de pessoa, e os amigos dele, que não eram poucos, o achavam um cara tão legal.

Eu ainda acreditava, preconceituosamente, que o estuprador é o outro, um cara à parte a todos nós — o que quer que seja isso. Ou, pelo menos, um desconhecido. Ou um namorado que faz da sua vida um inferno 24 horas por dia, e não alguém que te leva pro inferno e depois fica tudo bem, como se o horror acontecido fosse só um pesadelo que jamais se encaixaria naquela realidade bonitinha.

Enquanto eu estava ali, vivendo aquela relação doentia, eu custei a enxergar que ele esmagava a minha auto estima, das maneiras que descobria serem eficazes, para me controlar. E que o meu comportamento, o tanto que eu me encolhia e me submetia para evitar novos ataques, só intensificava esse ciclo, já que dava a ele o direcionamento necessário para me manter mais e mais fechada numa caixinha de posse dele, como o objeto que ele achava que eu era.

Foi só depois de desenterrar a cabeça dessa lama que eu consegui ver que não há irritação ou frustração que justifiquem humilhações, violência verbal, ou a pessoa me tratar como se eu fosse uma imbecil, e ela, uma salvadora da minha pobre alma limitada.

E só então eu assimilei também que violência não é só ir parar no hospital, com sangue e osso quebrado. Também não é só estupro. As agressões de um relacionamento abusivo começam lá atrás, nas primeiras demonstrações da ideia de que um é dono, salvador e guia do outro, que geralmente aparecem quando a gente tá cheia de esperanças e expectativas e acha engraçadinho o cara se portar como um príncipe que veio a galope te tirar dessa torre que é a sua vida. Mas aqui vale uma dica: se um cara dá a entender que sua vida antes dele chegar era uma coisa medíocre, já botou o crachazinho de embuste. Pode correr desse aí.

Desde que tudo acabou, eu só quis esquecer, enterrar a merda no passado e seguir em frente. E eu segui. Namorei outras pessoas. Namorei ninguém, o que também é ótimo. Fiz viagens incríveis. Criei projetos de que tenho orgulho, no trabalho e fora dele. Fui a festas, saí com amigas, vi filmes engrandecedores, li livros geniais, me diverti, me conheci, me melhorei. Casei com um cara maravilhoso. Mudei de casa, de cidade, de estado. Engravidei. Pari. Passei por um puerpério, me reinventei. Vivo rodeada de pessoas cheias de amor. Amo a vida que tenho e me sinto feliz.

E agora, justamente agora, essa lembrança ressurgiu. Foi lendo um conto, uma ficção sobre uma garota que conhece um cara e decide transar com ele, que me veio a epifania. Consentimento não é um cargo público concursado. Ele não é vitalício. Consentimento tem que ser explícito e pode ser revogado a qualquer momento. E qualquer coisa feita sem consentimento da outra parte é uma violação.

Aí eu finalmente entendi por que passei quatro anos correndo dessa lembrança ruim, e essa lembrança ruim correndo atrás de mim. Porque ela não é mera lembrança ruim de um relacionamento que não deu certo e que foi permeado por mal entendidos. Essa lembrança é de estupros que sofri quando fui violentada de diversas formas por um abusador.

Agora tudo faz sentido. Eu não sou fraca, nem burra, nem mereço ser tratada de um jeito que me faça sentir um lixo. Eu só fui espelho e vítima de uma pessoa cheia de problemas, alguém potencialmente perigoso que só sabe se relacionar com outros de maneira abusiva. Com alguns colegas de trabalho e com a própria mãe, inclusive. E a culpa não é, nem nunca foi, minha.

Na verdade, eu sou uma mulher foda. Eu saí dessa relação horrorosa e tive forças para não deixar que as marcas dela me derrubassem. Eu ressignifiquei o meu amor, o meu corpo, a minha existência.

Eu não sou grata ao meu ex-namorado. Eu sou grata às pessoas que me amam e me dão o apoio que eu preciso, eu sou grata a todas as mulheres que tiveram a coragem de compartilhar as próprias dores e, indiretamente, me ensinaram o que é um relacionamento abusivo. E eu sou grata a mim, porque a minha felicidade é mérito meu.

Apesar de tudo, eu pude fazer desse período da minha vida uma porta para aprender sobre mim e quem eu sou, e para enxergar a força e a coragem que eu nem sabia que tinha. E que quem vive hoje o que eu já vivi, certamente também tem, só não consegue perceber, ainda.

Às vezes eu acho que a força e a coragem que nós temos para sobreviver a tudo isso são uma só para todas nós. Como um inconsciente coletivo só das mulheres, que todas temos a chave para acessar e o poder de compartilhar. Nenhuma de nós, por mais que acredite ser, é realmente fraca. Tentam nos calar e nos apagar, mas nós voltamos. Porque somos entranhadamente fortes, e feitas umas das outras.

***

Imagem de capa: Mujer saliendo del psicoanalista, Remedios Varo







As publicações do CONTI outra são desenvolvidas e selecionadas tendo em vista o conteúdo, a delicadeza e a simplicidade na transmissão das informações. Objetivamos a promoção de verdadeiras reflexões e o despertar de sentimentos.