“Precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia.” Valter Hugo Mãe
Quando pequena eu tinha um pesadelo que se repetia. Sonhava que acordava em um lugar estranho, sem meus pais. Sozinha. Por noites seguidas despertava aos prantos e levava horas para me acalmar. Às vezes, dias. Anos depois, há pouco tempo, fez-se real a profecia. Despertei em um lugar estranho, não encontrei meus pais. E eu estava sozinha. Mas já não tive mais medo. A solidão que outrora me assustava, hoje me serve de guia. Despertei e a solidão não me assusta tanto quanto a ideia de caminhar em má companhia.
Portanto quando minha sobrinha me perguntou sobre minha próxima viagem, “você vai viajar sozinha, sozinha?”, a resposta é sim, vou sozinha, mas solidão também é companhia. Levarei comigo a força e o desejo de tantas mulheres que vieram antes de mim, abrindo lugar para que eu pudesse desfrutar de uma vida de privilégios. Solitárias mulheres privadas de liberdade, solitárias cárceres de seus desejos castrados. Mulheres com corações inundados, encerradas na solidão das escolhas escassas. Vou em companhia daquelas que sequer ousaram sonhar em ir tão longe, porque ousar e sonhar eram verbos proibidos de mulher conjugar. Vou sozinha, mas sou muitas.
Carrego também a teimosia que herdei de minha mãe, que sempre insistiu em se levantar, após cada queda, incessantemente, repetidamente. Teimou tanto obedecer, teimou tanto até esquecer. Levo comigo a solidão de seu esquecimento, do escorrer-entre-os-dedos de suas memórias.
Levo a prudência de meu pai e sua paixão por explorar o mundo; lentamente, degustando, cada passo, cada esquina. Percorrendo caminhos com passos ligeiros, e a mente tranquila. Levo a solidão de seus últimos dias, a solidão de doença terminal encerrando precocemente tantos sonhos, tanta vida.
Vou com a bagagem cheia de memórias e saudades. A certeza de que eles me prepararam para o mundo, para ser forte e encarar meus pesadelos nos olhos. Acordei sem meus pais, mas não me sinto sozinha. Levo comigo meus medos de menina e a coragem de mulher crescida.
Todavia me fazem companhia as histórias que não foram escritas. Sigo convicta de que as boas histórias nem sempre são aquelas que duram uma vida, pois muitas delas são repletas de silêncios velados. Silêncios que falam tão alto, que são ensurdecedores.
Acredito que as melhores histórias são feitas de gritos que silenciam dores; de lágrimas que transbordam nossa incapacidade de sermos melhor para o outro. São aquelas que deixam feridas expostas sangrando nossa imperfeição. Histórias que têm como protagonista a rebeldia de não nos ajustarmos demais ao desejo alheio e de não cedermos tanto até descobrir tipos piores de solidão: a solidão de quem se perde de si, a solidão de quem se perde no outro.
Para curar não é preciso apenas tempo, também é preciso movimento. É preciso disponibilidade e autoconhecimento. E uma boa dose de solidão. Caminho só, mas não estou sozinha. Hoje a solidão não me assusta, e sim me faz companhia.
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Imagem de capa meramente ilustrativa: cena do filme Free
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