A gente acha que é feito de pedra dura, que tem armadura, mas a gente é feito de matéria mole, a gente é frágil feito escultura de areia, a gente é feito pedra sabão.
A gente acha que pode perdoar tudo, suportar tudo, superar tudo e sair ileso pelo vão da janela dos fundos.
A gente acredita que amor cura qualquer doença, que é feito emplastro, feito poção de arnica, feito morfina. Que cura qualquer dor.
A gente acha que ama feito música do Ivan Lins. Que nosso amor vai fazer coisas que até mesmo Deus duvida, que vá juntar pedaços e vá curar feridas.
A gente pensa que o nosso amor ama pelos dois, que o nosso amor vai vencer as olimpíadas, a copa do mundo, as eleições. Que vai arrebentar os muros que o outro construiu.
A gente acha que é fênix, que vai renascer das cinzas. A gente acha que é gato de sete vidas, que amor tudo supera, tudo suporta… tudo balela.
Um dia a gente acorda e descobre que carrega as marcas da insistência, da resignação; descobre que o nosso amor foi coisa conveniente e que amar foi em vão.
Um dia a gente resolve olhar para as cicatrizes e se descobre toda remendada.
Um dia a gente vê que foi útil para tapar buracos descobertos por outros santos, para curar feridas causadas por outros carrascos. Percebe que ter rostinho bonito e corpão gostoso serviu de troféu, de pomada antinflamatória para ego doente, para autoestima baixa.
Um dia a gente finalmente tem sentidos para perceber que nem o amor da gente e nem a gente mesmo tem valor algum que não seja o uso e a posse que demos ao outro, acreditando que o amor nos blindaria o corpo e a alma.
Um dia a gente acorda e o nosso corpo adoeceu. A alma suporta, mas o corpo é fraco, é feito pedra sabão que poderia ter sido lindamente esculpida se o artista que nos tomasse nas mãos fosse um grande escultor, mas não, ele não era o que os nossos olhos enxergavam. Nossos olhos eram impregnados de amor – assim como o resto todo de nós. E o amor enxerga mal, o amor tem vista turva e uma mania de ver beleza em adagas prontas para nos furar a barriga.
Um dia a gente olha para a nossa barriga furada e vê o estrago ainda sem acreditar que o ser amado tenha feito isso, por mais que carregue a lista de cortes, punhaladas, tapas e da pior das dores: a da indiferença, a gente acha que o amor vai vencer. E a gente segue, insistindo, amando, perseverando abraçada em qualquer livro da Nora Roberts, em qualquer música, mesmo que não seja do Ivan Lins, em qualquer poema do Olavo Bilac.
A gente segue pensando-se triunfante por ter conseguido sobreviver aos naufrágios, por ter conseguido suportar, por ter perdoado, por ter se sacrificado para que o outro sobreviva e então, a gente morre.
A gente morre do corpo adoecido.
A gente morre da doença que não mata a alma, mas vence o corpo que é fraco feito galho seco.
A gente morre do coração estilhaçado, cansado de tanto bater forte por uns dias e quase parar em outros.
A gente morre com a pele e com a boca seca, com o cérebro atrofiado, com os rins e o fígado cansados das batalhas.
A gente fracassa e se arrepende de não ter ouvido Shakespeare, de não ter prestado atenção em Tolstoi, de não ter ouvido direito Chico quando cantava o Samba do Grande Amor.
A gente percebe que amor não tem espaço nesse mundo e que tem gente que talvez não perceba o mal que faz aos outros e cujo ego não hesita em fazer maldades.
A gente morre, mas não morre como vítima, morre como gente teimosa e insistente, que ficou ali amando e apanhando até morrer, feito certo rouxinol que a gente conheceu há tempos quando o mundo nos enviou Oscar Wilde, e a gente também não entendeu o recado dele que também morreu doente e sozinho dentro de um quarto em Paris.
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