Lucy Rocha

“Sou mais doente que ele?”

Uma leitora me escreve com uma tremenda inquietação. Usa as seguintes palavras: “Depois de ler todos os dias o que você escreve e os comentários, estou quase chegando à conclusão que nós somos mais doentes que eles. Nós amamos nossos carrascos e nosso esforço para não manter contato é homérico e causa dor. O que é isso?”

Há nessa afirmação muitas verdades, mas é preciso entender alguns aspectos, para não assumir para si culpas que não lhe pertencem.
Primeiramente, transtornos de personalidade não são doenças, são perturbações da personalidade que formam uma classe de transtorno mental que se caracteriza por padrões de interação interpessoais tão desviantes da norma, que o desempenho do indivíduo tanto na área profissional como em sua vida privada pode ficar comprometido.

Assim, os padrões da dependente emocional também estão inadequados, muitas vezes caracterizando um transtorno de personalidade (dependente), mas não é uma doença no real sentido da palavra. Doenças físicas surgem desse estado de coisas, mas os transtornos são ligados à inadequação de comportamentos quando comparado ao “normal”, não a doença.

Esclarecido isso, e usando a palavra doença de forma figurada, não posso afirmar que você está MAIS “doente” do que alguém portador de transtornos de personalidades incuráveis como são os transtornos de personalidade narcisista e antissocial.

Se você está lidando com um narcisista ou com um psicopata completo, está lidando com dois transtornos extremos e, particularmente, desconheço transtornos mais nefastos, ou, de forma figurada, mais “doentes” do que esses, haja vista o potencial lesivo que eles têm.

Pode ser que você esteja apenas lidando com alguém difícil e que tudo possa se ajustar com o tempo e o esforço de ambos. Mas veja, quando você identifica alguém em todos os critérios de alguém perverso, saiba, dificilmente essa pessoas está apenas passando por uma fase e acreditar nisso é autossabotagem.

Dito isso, vamos voltar a quem interessa, que é VOCÊ. As razões que levam uma pessoa a permanecer, tolerar, querer, sentir falta de alguém abusivo podem ser muitas. Vou elencar algumas que conheço, sem no entanto, restringir-me a elas:

1. Você pode ter transtorno de personalidade dependente.

2. Você pode, na dinâmica sado-masoquista que se instala nessas relações, ter se tornado dependente emocional/codependente afetivo desse carrasco;

3. Você pode estar com medo de perder a pessoa que você idealizou e em negação da pessoa que o abusador realmente é. Desejou tanto aquele ideal romântico que agora tem dificuldade para abrir mão dele;

4. Você pode ser o tipo de pessoa que eu chamo de “gente que não se deixa amar”, ou seja, gente que só se sente atraído por quem lhe faz penar para receber amor. Gente boa, amorosa e disponível para essas pessoas, é sem graça, que é também uma característica da MADA;

5. Você pode estar “sequestrada” emocionalmente. Com as alternâncias de tratamentos bom e ruins, com o “gaslighting”, as humilhações, as agressões verbais, o ataque à identidade e autoestima de seus alvos, abusadores sequestram a sua subjetividade e você perde a noção de quem é sem aquela pessoa. De novo, ligação através do trauma;

6. Você pode ter vindo de um lar abusivo e, inconscientemente, reproduz em suas relações aquilo que vivia em sua casa, seja como tentativa de consertar o passado no presente, seja na tentativa de criar um ambiente ao qual você se habituou e, portanto, nele sabe sobreviver;

7. Você pode estar sofrendo de Síndrome de Estocolmo ou “trauma bonding”, ou seja, ligação através do trauma. Foi tão agredida e danificada pelo seu algoz, que não consegue se separar dele. Acha que consertá-lo é um caminho mais curto, pois consertar-se lhe parece algo penoso e impossível, tamanho o estrago que você percebe ter sofrido;

8. Você não recebeu afeto ou não entendeu como afeto o que lhe foi ofertado pelos seus objetos primários (os pais ou quem os represente). O sentimento de abandono e rejeição pode ter feito com que você se tornasse “a boazinha” que, através da doação exacerbada, tenta se mostrar indispensável.

Você dá muito, mais do que lhe pediram, perdoa sempre que não recebe, na tentativa de mostrar quanto você é “boa” e, portanto, merece ser amada. Quando percebe que não vai receber, você passa a exigir amor, como quem passa ao outro uma fatura a ser paga por tudo aquilo que deu. Ao exigir de alguém que não tem para dar, você se vê num ciclo sem fim de abuso, pois se recusa a desistir depois de tanta doação. Se fizer isso com alguém saudável, ao invés de ser explorada, você o sufocará e afastará. Aliás, essa será a desculpa do perverso quando não tiver mais nada para tirar de você.

Seja qual for o seu caso, é importante buscar apoio terapêutico, leitura, autoconhecimento. Para tudo o que descrevi acima existe tratamento terapêutico e informação que pode levar você a substituir um padrão de comportamento doentio/inadequado por padrões saudáveis.

Cada pessoa é uma história e cada uma se beneficiará de um tratamento diferente. O que importa é que É POSSÍVEL TRATAR. O mesmo não se pode dizer de narcisistas e psicopatas completos.
Daí a resposta: não, você não está MAIS doente do que seu carrasco, mas certamente precisa de muita ajuda, bem mais do que ele.

MAS E PARA ELE (OU ELA) , TEM TRATAMENTO?

O maior problema que vejo quando me comunico com pessoas com o questionamento da leitora acima é que erram na pergunta. Querem saber se há tratamento para o outro e não para si. Se sentem doentes porque não conseguem entender porque o outro não foi ou é capaz de dar-lhes amor. Querem saber onde erraram com seus algozes e como se livrar da dor de viver naquele inferno sem ter que abrir mão do sonho. Querem saber como CURÁ-LOS.

São perguntas e pretensões equivocadas! O foco de sua preocupação deve ser SEMPRE VOCÊ.

É afirmar: O que estou tolerando é intolerável.
É questionar: Há tratamento para MIM? Como posso ME ajudar?
E quanto ao abusador, é inútil orar aos céus que um milagre o traga curado, modificado e como você o idealizou. Para entender porque isso é inútil, pergunte-se e responda-se com honestidade:
O meu parceiro acredita que precisa de mudanças?
Ele se considera errado, inadequado ou doente?
De quem, segundo ele, é a culpa do fracasso da relação? Ele está certo?

Quando ele admite precisar de “tratamento”, faz isso de verdade ou apenas para sugar me para dentro da relação de novo, voltando rapidamente aos mesmos comportamentos e dizendo que sou EU quem precisa de tratamento? Ele quer minha ajuda, deseja uma mudança ou acha que o problema sou eu?

A mudança dele beneficia a ele ou a mim? E aqui cuidado com a resposta porque VOCÊ pode achar que uma mudança nele o beneficiaria porque ele seria feliz, mas ele pode entender que a vida dele tal qual é está muito bem, obrigado!

Eu, que estou completamente dependente e viciada(o) nessa relação, já busquei ajuda para si mesma(o)?
Entenda: enquanto o seu sofrimento atual não levar o foco para você, para o seu problema e o seu bem-estar, você estará procurando um remédio que não existe para um paciente que se entende saudável.

E doa o quanto doer, seu processo de cura JAMAIS terá início se você:
-Continuar a manter contato, seguir os passos de seu algoz nas redes sociais, segui-lo pela cidade, inteirar-se de sua vida, relacionamentos, etc.
-Deixar canais de comunicação abertos onde recebe suas mensagens manipuladoras, ligações, etc.
-Continuar a ser sua platéia, se fizer presente onde ele está, mantiver contato com gente ligada a ele, enquanto ele humilha, desespera e assombra você.

Imagem da capa: WAYHOME studio/shutterstock

Lucy Rocha

Coach de relacionamento, administra a página Relações Tóxicas, na qual dá dicas e apoio a pessoas que vivem, viveram ou sobreviveram a uma relação abusiva. Como advogada, atua principalmente em questões de família. Seu maior prazer é escrever reflexões sobre a vida e sobre o ser humano.

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Lucy Rocha

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