Por Tatiana Nicz
Em 2010 quando o dono do apartamento que eu alugava colocou-o a venda, resolvi voltar para casa do meu pai temporariamente até ter condições para comprar o meu apartamento. Mas, parece que foi em um piscar de olhos que o que era para ser temporário se transformou em um período de cinco anos.
Nesse tempo meus irmãos já moravam em outras cidades, meu pai se mudou para morar com sua mulher e eu decidi ficar. Na época realmente não me importei com isso, era um apartamento bem localizado, totalmente equipado e de custo baixo. A decoração havia sido feita pela minha irmã a pedido do meu pai e, apesar de bonita, não tinha muito a ver comigo, mas eu fiquei. Além disso, todas as coisas que meus irmãos e meu pai não usavam, porém não queriam se desfazer estavam naquela casa. Era muita coisa sem utilidade ou uso e tinha muita coisa minha. E eu decidi que precisava ficar e arrumar aquela desordem.
Dizem que para você saber se a vida de uma pessoa está “nos eixos” você deve olhar para seu guarda-roupa. E eu diria que o inverso também pode valer, ou seja, se você quiser colocar sua vida “nos eixos”, comece por arrumar seu guarda-roupa. Foi por lá que comecei. Aos poucos virei uma profissional de “fazer limpas”. O mais difícil disso tudo é que não é simplesmente pegar tudo e jogar fora, é preciso cautela para olhar coisa por coisa e dar uma destinação correta para tudo.
E de lá para cá passei muitos meses me desfazendo de tudo e organizando a desordem. Gaveta por gaveta, prateleira por prateleira, todas as pastas, os livros, os papéis, aliás muitos papéis. Aproveitei também para limpar meu carro, as bolsas e os bolsos. Estendi para minha vida virtual: álbum de fotos, folders, caixas de e-mail, contas em desuso. Cada canto da minha vida recebeu uma boa limpeza. Nesse período foi bom olhar para o coração, nele também é possível de se acumular mágoas, dores e muita carga extra que também precisam encontrar uma destinação correta.
Em uma parte do processo eu estava tão paranoica que achei que tinha desenvolvido algum tipo de TOC, porque tudo que via eu tinha vontade de doar ou jogar fora. Mas eu entendo, nós somos uma geração de acumuladores. Acho que nunca na história da humanidade o homem acumulou tanto. Nós acumulamos tudo. E não paramos de acumular nunca. E quando prestei mais atenção nisso pude entender porque estamos vivendo em um mundo com tanta desordem.
O processo se intensificou quando finalmente mudei para meu apartamento. Mudança de casa é algo que dá trabalho, porém renovador. E eu estava há meses lidando com a papelada do apartamento, ansiosa para mudar, mas tudo andava meio enrolado, nunca saía, então no dia que meu pai faleceu recebi um e-mail que estava tudo certo para eu pegar as chaves. Era tempo de recomeçar. Quando fiz a mudança me certifiquei de deixar algumas gavetas vazias, porque era um pouco assim que me sentia, porque eu quero deixar espaço para o novo entrar.
Na mesma época que meu pai faleceu minha mãe foi morar com minha irmã em Manaus e por ser uma viagem tão longa, foi com ela muito pouco do que possuía. E eu, que havia acabado de organizar a minha bagunça, me vi novamente cercada de coisas. E não era pouca coisa ou coisas sem importância. Era a vida material da minha mãe. Tudo que ela acumulou estava em minhas mãos. Meu pai sempre me dizia para que eu doasse duas peças de roupa para cada uma que comprasse. Ele era um cara extremamente econômico e organizado. Ainda assim, a gente acumula coisas. E agora, a vida material dele também ficou em minhas mãos.
O problema do que acumulamos não são as bugigangas em si, essas são até fácil de dar destinação, o complexo nos acúmulos são as lembranças que ficam impressas em cada objeto, isso faz com que algumas coisas tenham valor difícil de mensurar. É mesmo um processo dolorido esse de fazer limpas, é como se eu estivesse a desempoeirar o passado, a reviver cada memória, toda nossa história. E no caso das coisas deles, quanta história que ficou impressa e que eu não saberei contar.
É fácil doar os utensílios domésticos e as roupas de cama, mas é difícil encaixotar algumas coisas, como os antigos álbuns de fotos. É fácil doar os copos, mas é duro olhar para os cristais usados em momentos especiais e festas. Eu consegui dar destinação para muitas miudezas, mas ainda não sei o que fazer com os dentes de leite que meu pai guardou em um potinho de filme etiquetado com o nome de cada filho. Eu rasguei muitos papéis, mas me detive ao encontrar por entre as coisas do meu pai a passagem da minha primeira viagem internacional em voo solo.
E por ser algo assim tão minucioso, levei quase dois meses só para esvaziar o apartamento da minha mãe (e ainda não consegui organizar as coisas do meu pai). Hoje finalmente consegui tirar as últimas caixas de lá. Meu coração ficou pequeno e não contive as lágrimas diante daquele apartamento vazio, mas que guarda tanta memória.
Quando eu era pequena meu pai comprou em minha homenagem um quadro chamado “Tatiana na janela”. Eu sempre gostei muito dele. O nome do quadro é bem literal mesmo: uma menina de costas olhando pela janela. A minha infância toda cresci olhando para ele e imaginando o que a Tatiana estava contemplando daquela janela. Quando meus pais se separaram o quadro ficou para minha mãe. Hoje ele é meu. E agora pendurei-o na parede do meu quarto que é para eu acordar todos os dias e contemplar o mundo através da janela de Tatiana; e lembrar sempre que, apesar da pintura me agradar muito, a vida é mesmo feita de momentos e memórias e que as melhores coisas da vida de fato não são coisas.
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