Clara Dawn , nome que vem conquistando espaço e respeito no cenário das letras brasileiras, é uma escritora goiana de perspicácia ímpar na construção de personagens e na descrição das sutilezas da alma.

É autora de sete livros, dentre eles, “Sofia Búlgara e Tabuleiro da Morte” e “Alétheia”, publicado em 2008 pela Editora Kelps.

Na crônica abaixo, podemos verificar, não só a maestria da escrita, mas a contundência de quem tem uma alma de sentir o mundo. Ao ver o próprio filho vitimado de um surto esquizofrênico, ela diz “Foge, Tatua, foge”, sem saber que o seu filho já estava “de malas” prontas para visitar as paragens eternas.

Publicaremos, semanalmente, uma crônica de Clara Dawn, minha conterrânea cuja escrita me encanta e orgulha e que por mim é lida com os olhos da alma, e com muita atenção.

Nara Rúbia Ribeiro

Título original: Foge, Tatua, foge!

Tudo certo para o desjejum. Um pouco mais tarde, às nove horas: leite achocolatado com um suculento sanduíche de atum. Tinha imaginado que, depois do café, poderia levá-lo para cortar os cabelos, fazer a barba e, quem sabe, lhe compraria um par de  tênis e uma bonita camisa com novos tons de xadrez. A que ele tem usado, feito de tecido tipo flanela, já está bastante surrada.

Mas ele não apareceu. Na caneca, sobre o leite, boiava uma nata escura e asquerosa; o cheiro, outrora salivante de atum defumado, agora putrefez o ar oprimido da casa – ambiente pequeno demais para guarnecer a espera – e olha insistentemente pela porta, como se esse gesto fosse capaz de fazê-lo surgir na esquina: andando um pouco encurvado por causa do peso da mochila que carrega nas costas desde sempre; o jeans encardido e justo demais nas panturrilhas, a velha camisa xadrez, os tênis cansados de carregar o mesmo corpo. O olhar cabisbaixo mirando as passadas das longas pernas – olha para a porta e se depara com a imagem de sua mãe, como se ela fosse parte da porta… A porta que nunca se fecha.

Não. Ele não está na esquina. Outra vez, não veio. Não adianta subjugar a porta. Ele não virá. Não virá mesmo que lhe compre as estrelas, mesmo que lhe cubra de mimos, mesmo que arranque a porta com os seus portais, mesmo que arranque os lábios para escancarar um riso afortunado… Mesmo assim, ele não virá. Porque na sua perspectiva de vida emboscou-se nas alegrias de um ‘não o sei o que’ maior do que todas as insígnias da educação maternal.

Emboscou-se. Sim, com a ciência de quem acredita saber exatamente o que faz da vida.  Com o conceito daqueles que se firmam na ideia de que possuem a capacidade de entrar e sair de qualquer tipo de situação – por mais viciosa que a situação seja. Armou para si uma rede, sabendo de antemão  que a rede que armava  é do tipo que possui nós indesatáveis.

Quando era criança, não tinha um nome – era Filho, o amado filho. Com o tempo chamava a si mesmo de Tatua, às vezes de Filho, às vezes não se chamava – era riso gargalhante como se dissesse “meu nome é felicidade”. Isso foi há muito tempo, enquanto ele ainda fugia de casa para “torar e aparar pipas”. Num tempo em que ele queria voar como se um pássaro fosse. Um pássaro cuja plumagem fora arqueada com varetinhas de piaçaba e cobertas com coloridos papéis de seda. Sua cauda enorme e esvoaçante rasgaria o céu e desenharia nas nuvens as letras do seu nome… Em sua imaginação seria perseguido por uma águia cruel e ele poderia ouvir os gritos alucinantes: “Fuja, Tatua, fuja…”.

Ele não fugiria, enfrentaria a águia e ela não seria forte o bastante para lhe impedir de alcançar o seu sonho. O sonho a que sua mente o capacitou – o sonho de voar alto – tão alto que nem mesmo uma águia seria capaz de alcançar, tão alto que faria voos rasantes nas planícies celestiais e nada, nem ninguém o demoveria de sua obstinação – a obstinação de escrever o seu nome nas alturas.

Mas o tempo levou o menino, levou a pipa, levou o riso debochado de criança feliz, levou o olhar chamuscado de brilho pelas grandezas das pequenas e rotineiras conquistas, levou o desiderato da boa convivência, cobriu as varetinhas de piaçaba com um tom cinza e sua enorme e esvoaçante cauda está repleta de nós. Emboscado, entorpecido… perdido, perdido.. Perdido: pássaro nobre voando com abutres e se alimentando de morte.

Não é mais um menino, não é mais um pássaro/pipa… é uma parede branca com as marcas encardidas no lugar que antes era de um quadro. Um quadro orquestrado de uma imagem sonora e vivaz. Um quadro repleto de informações inteligíveis, um quadro reflexivo – um quadro que sua mãe amava ver na parede… Mas a parede está vazia – e a única revelação que ela expressa é o pânico de alguém que descobriu que há águias que não se pode vencer sozinho. Assim, outra vez ouve os mesmos gritos: “Foge, Tatua, foge”.

Clara Dawn

www.claradawn.com

Nota da autora:
(Quando enviei essa crônica para o jornal, no dia 14 de agosto, eu não poderia imaginar que o o meu filho (o Tatua) estava com a sua mala pronta. E no dia 17 de agosto, depois de passar 45 dias em Franco Surto Psicótico ele se matou. Por coincidência ou não, Arthur nasceu no dia 26 de junho – Dia Internacional de Combate ao Uso de Drogas. Foi instituído pela ONU em 1987, seis anos depois o meu Arthur nasceu. Tinha a vida normal de jovem de classe média com todas as oportunidades de ser bem sucedido e seria, caso não fosse sua paixão por Cannabis Sativa (a maconha). Usou-a durante cinco anos e por ser pré-disposto geneticamente a esquizofrenia, surtou por duas vezes em seis meses. Do primeiro surto ficou livre com trinta dias e ficou “limpo” por cinco meses e 27 dias. Mas no dia do seu aniversário quis desafiar a doença e recaiu. Bastou apenas um cigarro de maconha para que ele entrasse em surto outra vez e deste surto não se livrou nem mesmo com o mais forte dos antipsicóticos e por fim, não suportando as terríveis vozes que o atormentavam dia e noite, instigando-o ao suicídio, assim o fez. Ele deixou o rascunho de um livro onde narra toda a sua experiencia com as drogas e o transtorno mental e uma bandeira: MACONHA FAZ MAL SIM.  Ele jamais sentiu vergonha em dizer que era um adicto com transtorno mental. Frequentava os Narcóticos Anônimos e se orgulhava publicamente em sua página no Facebook em viver limpo, SÓ POR HOJE.  – Publicado no jornal Diário da Manhã – DMRevista – Goiânia – Goiás, em 26 de novembro de 2012 – Republicado em 19 de agosto de 2013 – LEIA TAMBÉM: SÓ POR HOJE – texto elucidativo sobre esses acontecimentos).

Nota da CONTI outra: O texto acima foi reproduzido com a autorização da autora.

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