Há alguns anos, no Centro de Saúde onde trabalho, ocorreu uma situação envolvendo um paciente meu, que acabou virando piada familiar. O paciente, um senhor muito simples, na casa dos seus 50 anos, tentando agradar, veio com essa: “Eu falei pra minha mãe que o tratamento foi muito bom, a estagiária fez o canal direitinho…” Percebendo que a “estagiária” em questão era euzinha, expliquei: “Senhor, não sou estagiária. Tenho 17 anos de profissão…” Incrédulo, perguntou minha idade. Respondi: Trinta e oito. Assustado, o homem se afastou e me olhando de alto a baixo começou: “Quarentãããããoooo?!?!? Não acredito! Já é quarentãããããooo?” e eu, muito sem graça, afirmei novamente “trinta-e-oito”, mas ele já não ouvia, e sem descanso, foi-se repetindo, repetindo… insistindo no quarentãããõo_ com ênfase no ãããooo_  enquanto se despedia, assombrado.

Desde então, a piada foi contada e recontada nas mesas da família, e a turma, que não perdoa nada, não via a hora desses dois anos passarem para enfim me chamarem de quarentãããããoooo…

Chegou. Na Sexta Feira Santa, ou da Paixão, meu 40o. aniversário virou fato concreto. Decidi abrir mão dos festejos, escapando no dia seguinte para São Paulo. Lá, conheci o famoso pastel de bacalhau do Mercadão _ lotado, me decepcionei com a hospitalidade do local_, depois seguimos para as lojinhas da Liberdade (o filhote atrás de sua coleção de pokémons), e arrematamos a noite no Terraço Itália, que eu tinha vontade de conhecer. No dia seguinte, domingo de Páscoa, almoçamos com minha avó e retornamos à Campinas.

Segunda feira, feriado de Tiradentes, sossego em casa. Arrumei gavetas, separei roupas pra doação, ajudei meu filho encapar caixas para um trabalho da escola. Meu irmão, animado, liga querendo combinar uma pizza pra selar o fim do feriado prolongado. Eu, cansada e satisfeita com minhas comemorações, tentando fazê-lo mudar de ideia: “Nossa mãe vai chegar cansada de Uberaba, nem vai querer sair, deve estar doida pra descansar…” Ele carente: “Ah não, eu passei a Páscoa longe de vocês, quero muito encontrá-los…” Meu marido, preocupado: “Com o movimento das estradas, sua mãe só chega depois das dez…” Ligo pra ela: “Mãe, onde você está?” Ela animada: “Entrando em casa. Vamos sair?” Eu ponderada: “Nossa mãe, mas você não está cansada?” Ela, mais animada ainda: “De jeito nenhum, quero muito encontrar vocês. Passa aqui oito e meia”

Bom, se minha mãe, aos sessenta e poucos, depois de horas na estrada, se encontrava nessa empolgação toda, quem sou eu pra desanimar? Corre pro banho, arruma o menino, passa um batom. Oito e meia estamos na porta da minha mãe. Segue pra pizzaria.

Com que semblante se recebe uma surpresa? Como se processa dentro de nós a mudança daquilo que era para aquilo que é? Com que rapidez nos adaptamos ao inesperado?

Já me perguntei isso diversas vezes, diante de fatos que ocorreram comigo e ao meu redor ao longo dos anos.
Qualquer surpresa é um evento que não podemos controlar, por isso pode ser muito assustador para aqueles que preferem ter as rédeas muito firmes das próprias vidas. De qualquer forma, existem surpresas boas e ruins. Ou ainda aquelas que inicialmente seriam boas, e se transformam em grandes pesadelos. Ou o que parecia ser ruim, mas se torna um belo presente.

Entramos eu, marido e o filhote. Fazemos a curva, nos adiantamos a passos lentos. Começa a tocar “She”, do Elvis Costello, e lá na frente duas mesas se levantam enquanto rostos conhecidos sorriem ansiosos. A trilha de “Um lugar chamado Nothing Hill” _ ao vivo_ continua, e incapaz de seguir, dou meia volta e me escoro na danada que organizou todo evento quietinha, profissional. Entramos juntas, recebo abraços, desenhos feitos pelas crianças e me emociono quase sem fala.

Minha maior timidez vem dessa incapacidade de lidar comigo mesma. De receber afeto e elogios, de aceitar uma surpresa boa sem me sentir endividada, de ser homenageada sem recuar nem tropeçar nas inseguranças acerca de meu valor. Ás vezes é mais fácil depreciarmos a nós mesmos e recebermos as críticas do que sermos confrontados com nossas qualidades e méritos. Por que é tão difícil o olhar amoroso a nós mesmos?

Feliz, mas inadequada com a súbita demonstração de afeto, fui me soltando aos pouquinhos, diante da lembrança do “quarentããããooo, jamais esquecida por meu irmão. Recordei então uma frase do músico Lenine: “Família é um reduto de sanidade”.

E percebo agora, mais amadurecida e dona de meus caminhos, que a gente precisa ter com quem contar. Não são necessários laços de sangue ou habitar o mesmo chão, mas há de se construir uma teia onde possamos nos sustentar mutuamente naquelas horas em que nossos fios desatam, ou a alegria não cabe em nossos recintos tão estreitos…
Por mais tentador que seja viver de distâncias, feito Amyr Klink em sua ‘sozinhez’ desejada, isolados de todo barulho e confusão inerentes a qualquer família, é ali que encontramos o olhar que nos traz de volta; o olhar que nos redime e adivinha, para que possamos nos enxergar com mais tolerância e amorosidade também.

Crescemos, ganhamos novos contornos, enxergamos a vida por prismas diferentes, mas carregamos em nós os papéis que aprendemos a desempenhar em nossa família primordial.

Você já parou para pensar no papel que inventou para si, dentro da primeira casa que habitou? No quanto esse papel ainda pode lhe definir? O paradoxo é descobrir que você precisa se afastar desse papel para descobrir a própria identidade; ao passo que, terminada a jornada de ida, somente o retorno lhe possibilitará concluir-se por inteiro (o importante não é somente ir, mas ter para onde voltar…).

Ao fim da noite, já em minha cama, parei pra pensar em como cheguei até aqui. Em como eu estava feliz, ainda que a sensação de inadequação não me deixasse só. Agradeci a Deus pela grande família que tenho _ avó, mãe, pai, irmãos, marido, filho, cunhadas, primos, tios, sobrinhos, afilhados, amigos de perto e de longe_ e pedi o dom de ser uma aranha tecedora, capaz de entrelaçar minha vida àqueles cujos caminhos se esbarram e cruzam aos meus, pois a surpresa maior foi enfim perceber que formamos uma grande teia; uma teia onde é importante fazer o caminho de ida, porque faz-se necessário adiantar-se, ganhar novos contornos, percorrer roteiros de ‘desidentidades’, fugir do óbvio, descobrir desenhos próprios e distintos; mas há uma hora em que retroceder significa buscar-se também, e ao fazer o caminho de volta, percebemos que esse itinerário regresso não é contraditório. Ao contrário, nos dá direção e torna-se fundamental de tempos em tempos. Para nos confortar, para reconhecermos a nós mesmos nesse emaranhado de curvas que a história dá, para mais uma vez experimentarmos o que aquece e faz sentido, ou simplesmente nos sentirmos em casa. O fato é que a teia existe, e é tecida incessantemente _ em diversas direções, contornos e intensidades, mas sempre com a possibilidade do retorno. Sempre com a possibilidade de formar um grande desenho, onde se acomodam os anseios, as saudades, alegrias e tristezas, amores e desejos_ de ontem e hoje.

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Imagem de capa: Syda Productions/shutterstock

Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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Fabíola Simões
Tags: teia

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