Categories: Marcel Camargo

Dias traiçoeiros

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.” (Chico Buarque)

Sabe aqueles dias em que não deveríamos ter saído da cama? Sabe aqueles momentos em que desejamos sumir? Sabe aquelas situações em que nos encontramos aparentemente sem saída, sem respiração, coração saindo pela boca? Nada disso é gratuito; muito pelo contrário.

Nossas vidas são pontuadas por momentos preciosos e outros nem tanto – e há aqueles dias de lágrimas e tristeza sem fim. É inevitável termos de passar por isso, por esses reveses que machucam, esgarçam nossa alma, atropelam nossos sentidos. Parece que, por não conseguirmos conter dentro de nós tanta coisa boa que acontece, as rasteiras e os imprevistos vêm aparar isso tudo, como uma poda de sobrevivência. A alegria ininterrupta acabaria por descaracterizar a si própria, neutralizando-se e tornando-nos toleráveis à sensação de ganho e plenitude. Perderíamos, assim, a capacidade de deslumbramento frente ao contentamento e à beleza, uma vez que seria algo fácil, excedente, trivial. E o comum não nos provoca nada, não nos chacoalha os sentidos, não nos impele a agir.

Instalada de vez em nossas vidas, a felicidade não seria mais o objetivo de ninguém e, se não lutamos por ganhos, perdemos todos. Quando agimos em busca do bem, da felicidade, nossas ações atingem a várias pessoas, pois o raio das boas e das más ações é infinito. Atingindo-se o fim por inteiro, então o percurso finda e nada mais se alcança. Porque a vida é aquilo que acontece enquanto se vive. A felicidade, da mesma forma, é aquilo que se experimenta e se dissemina enquanto se procura. À medida que corremos atrás dela, vamos deixando pessoas felizes pelo caminho e nos fortalecendo, tornando-nos mais humanos, mais gente. Essa busca constante é mágica e imprescindível. Tanto nós mesmos quanto os indivíduos à nossa volta dela dependem. Afinal, não estamos sozinhos e as conseqüências de nossas atitudes atingem a muitas pessoas, seja positiva ou negativamente.

Nosso primeiro impulso, em meio às tempestades da vida, é querer que essa dor fira a tudo e a todos, pois nosso egoísmo, da mesma forma como nos provoca a inveja da felicidade alheia, não aceita que nós soframos sozinhos. Muitas vezes, em meio a essa escuridão, tentamos puxar para dentro dela quem se encontra à nossa volta, ofendendo, agredindo, violentando e culpando o outro pelos resultados de nossas próprias escolhas. Creio que muitos relacionamentos desmoronam por conta das cicatrizes que esses dias imprimem, pois o entendimento não consegue adentrar tanta dor e ressentimento e o amor vai morrendo aos poucos sob as violências verbais, os gritos, as ofensas e toda escuridão que transborda e inunda as vidas envolvidas. E, embora a dor fira, ela também ensina, incita à reflexão, à ponderação, obrigando-nos a rever nossos atos e a tentar aprimorá-los – a vida muitas vezes está nos dando a chance de recomeçar, embora seja quase impossível enxergarmos algo no calor de nossas emoções. Não há dúvidas de que sofrer nos fortalece, mas é preciso muita coragem e força de vontade para não nos deixarmos sucumbir, para não ruirmos por dentro e destruirmos nossos laços com quem caminha conosco diariamente.

Embora pareça injusto comparar uma dor à outra, existem ventanias que passam e nos retiram nossas maiores referências, o chão que nos sustenta, revestindo-se de tragédias avassaladoras, como a perda de um filho, de um braço ou de uma perna, das faculdades mentais, de nossa alma gêmea. Intensas demais, ou de menos, nossas perdas e frustrações nos clamam por nos despirmos de todo e qualquer fingimento, para que desçamos às profundezas mais recônditas de nossa escuridão solitária, sintamos essa dor dilacerante em toda sua crueldade, em todo o desespero e impotência que ela carrega, para que renasçamos, retirando força do que nos sobrou em nós mesmos e das presenças que insistem ficar ao nosso lado – pois há quem nunca desiste da gente -, para que nos impulsionemos de volta à vida, cujas cores e tonalidades aos poucos se descarregam do cinza, cujo ar então se torna menos rarefeito, menos sufocante. O enfrentamento corajoso daquilo que nos aniquila é uma viagem só nossa, por isso atrair os outros aos nossos vazios e pesadelos emocionais é covarde e injusto.

Os sobrevivente às intempéries físicas e sentimentais estão à nossa volta, ao nosso redor, ali na mesa do bar, no carro ao lado, nas manchetes dos jornais, no seio de nossa família. A mãe que visita o túmulo do filho, o jovem que se adapta ao braço mecânico, o moço que brada no pronto-socorro pelo atendimento à esposa deitada no chão frio, o catador de lixo que passa em concurso público, enfim, os exemplos de luta, enfrentamento e superação convivem conosco, mostrando-nos que nossa lida não é mais nem menos penosa e que deve ser combatida em tudo o que nos entristece, enfraquece e aniquila. E, assim como colhemos de acordo com a qualidade de nossas sementes, teremos uma ou mais mãos amigas e fortes nos amparando e nos resgatando de nossas misérias emocionais, de acordo com a forma como cultivamos nossos relacionamentos diários. Infelizmente, os invernos emocionais são recorrentes em nosso caminhar. Felizmente, eles haverão de passar, para que a dinâmica da vida prossiga mais forte, mais lúcida, acolhendo-nos, nesse ciclo, cada vez mais confiantes e prontos para amarmos e sermos felizes de novo – pelo menos até a próxima estação…

imagem de capa: Abel Halasz/shutterstock

Marcel Camargo

"Escrever é como compartilhar olhares, tão vital quanto respirar". É colunista da CONTI outra desde outubro de 2015.

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