A sabedoria não se relaciona somente ao tanto de leitura e de cultura oficial que acumulamos nos bancos das salas de aula, à extensão do nosso currículo. Ser sábio é ao menos tentar entender o que se passa dentro de si, saber o que dizer e como dizer, como conversar, de acordo com o que o outro oferece e precisa.
Dona Sabidinha (ela adorava que eu a chamasse assim) trabalhou em casa por anos, marcando minha vida e mudando minha percepção das coisas de uma forma muito mais convincente do que a maioria dos professores que tive em minhas andanças acadêmicas. Suas observações sobre a vida e as pessoas carregavam um olhar acurado e verdadeiro, impregnado de simplicidade, mas nem por isso simplista. Ela era capaz de reduzir e lapidar rebuscamentos vocabulares e ser convincente, elevando o lugar-comum a um nível de citação literária.
Aquela sábia mulher me fez enxergar que nada pode ser categorizado de forma estanque, imutável, pois a vida sempre encontra novas formas de nos surpreender, fugindo à subserviência a rótulos de quaisquer tipos. Nós é que tentamos controlar esse caos que nos rodeia, classificando, rotulando, nomeando tudo, ao passo que a vida foge ao nosso controle, como quando brota uma flor em meio ao concreto, jorra uma nascente em terreno inóspito, descobre-se mais um planeta confirmando nossa pequenez em meio ao universo, ou quando a sabedoria de quem mal frequentou a escola supera a de um douto pesquisador universitário.
Por muito tempo, atrelou-se sabedoria a conhecimento enciclopédico e titulações acadêmicas, o que nem sempre corresponde à realidade. Hoje, esse conceito vem mudando, felizmente, relacionando-a ao seu efeito prático, pois, mais útil do que conhecer a teoria, é utilizá-la na superação de problemas, no aprimoramento das interações humanas, nos avanços sociais desejáveis. Sabedoria meramente livresca costuma mofar nas estantes, já a sabedoria que levamos no ônibus, no trabalho, na mesa do bar, como a da Dona Sabidinha, ajuda a melhorar a vida em sociedade, tornando o mundo mais leve.
E esse mundo anda carente de trocas, de compartilhamento de vidas, de gente interessada no próximo, no bem coletivo, o que não se conquista em bibliotecas enclausuradas, nem na assepsia muitas vezes solitária de laboratórios de pesquisa, mas principalmente na interação dinâmica entre as pessoas, nos olhares compartilhados, no prestar atenção além de nós mesmos. Já alcançamos avanços notáveis na medicina, na astronomia, na engenharia – o que justifica o inegável mérito das atividades acadêmicas e de pesquisa -, no entanto, retroagimos cada vez mais em termos de convivência sadia, tolerante e harmônica, pois o outro nos interessa cada vez menos, visto não encontrar espaço em meio à nossa busca desenfreada pelo status social.
A sabedoria não se relaciona somente ao tanto de leitura e de cultura oficial que acumulamos nos bancos das salas de aula, à extensão do nosso currículo, aos prêmios acadêmicos obtidos, aos concursos públicos em que fomos aprovados. Ser sábio é ao menos tentar entender o que se passa dentro de si, saber o que dizer e como dizer, como conversar, de acordo com o que o outro oferece e precisa – há que se enxergar quem está ali ao lado -, é lutar com o que se tem, sobrevivendo não só para si mesmo, mas tornando-se uma pessoa prazerosamente visível.
Recentemente, correu pelas redes virtuais relato de pesquisador que, fingindo ser um gari, não era reconhecido pelos próprios colegas de universidade, que passavam por ele sem lhes dispensar mínima atenção. Tornamo-nos invisíveis, para muitos, quanto menor for o nosso currículo, quanto mais surradas forem as nossas roupas, quanto menos consumirmos e, ironicamente, quanto mais precisarmos de ajuda. Essa pretensa superioridade é perigosa, pois pode acabar convencendo erroneamente os ignorados de que não tenham mesmo valia alguma. Nem todos teriam a sagacidade da Dona Sabidinha que, nesse contexto, certamente diria: “é tudo perfumaria”.
Felizmente, esse comportamento não é homogêneo, pois conheço doutores extremamente generosos, humanos, de coração imenso, da mesma forma que existem pessoas carentes de estudo e de humanidade para com o outro. A vida nega-se realmente a categorizações limitadoras, sempre impondo exceções às supostas regras, de forma que o estabelecido seja questionado continuamente – os avanços e ganhos sociais dependem da contestação, da dúvida, do inacabado. Por isso a sabedoria é tão frágil, vulnerável, pois as verdades são negadas a todo instante, assim como teses são desconstruídas, crenças são abaladas, uma vez que a vida recicla-se e reinventa-se intermitentemente.
Temos de nos orgulhar, obviamente, de nossas conquistas nos vários setores da vida, seja nos estudos, no trabalho, na família, mas sem que nos sintamos superiores ou mais dignos de consideração por isso. Não podemos é medir nossa importância a partir de critérios que nos distanciem da necessidade de convivência partilhada com quem caminha ao nosso lado. Isentar o indivíduo de humanidade, eliminando-o de seu campo de visão, por conta de suas carências, é vaidade vã, deselegante e totalmente inapropriada frente às necessidades urgentes de tolerância e respeito por que clama a sociedade.
O mundo já anda por demais complicado, dispensando toda e qualquer distorção de valores que possa fragilizá-lo nesse sentido. Nascer em berço esplêndido não é um diferencial na vida de ninguém, mas sim aquilo que Dona Sabidinha chamaria de educação que vem “de berço”. Como se vê, a um desprezo aviltante, mas culto e asseado, é preferível um “bas tarde” iletrado e roto, mas revigorante e sincero – isso, sim, é o que faz, ou deveria fazer, toda a diferença em nossas vidas, todos os dias.
Imagem de capa: TORWAISTUDIO
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