Por Elika Takimoto
Oi, doutora. É o seguinte: você vai precisar fazer análise de um grupo. Quem são os componentes? Não se preocupe, na sua frente só serei eu mesma. É que eu tenho um leque de vidas que vou levando. Até há pouco tempo não percebia que era formada de muitas. Por estar em um corpo só, pensava ser um eu-somente. Até que li Fernando Pessoa e entendi o meu plural e a ebulição em que me encontro. Na verdade, foi esse amontoado de eus que entraram em conflito, mas não eu mesma se é que você me entende. Cada eu exige de mim uma postura diferente e esses múltiplos querem sincronicidade em lugares diversos. Tá tenso, doutora. Mega tenso. E pelo que estou entendendo, digo, esse eu-inteiro não está suportando essa convivência entre as partes.
Meu corpo, doutora, está padecendo. Enxaquecas horríveis, insônias, falta de apetite e de atenção e crises de choro no meio de minhas corridas de final de tarde. Consegue imaginar? Sim, posso lhe dar exemplos. Quero conhecer o mundo, muitos dizem que eu ia amar ser mochileira na Itália, mas não consigo mudar o meu CEP por ser o mesmo dos meus pais há quarenta anos. Veja que coisa ridícula. Todos os meus irmãos saíram de casa, minhas irmãs mudaram até de Estado. Não, eu não moro com meus pais. Moro ao lado deles. Pois então, o meu eu-filha faz o meu eu-mundo empacar. E ainda que o eu-mundo vença ele será infeliz e preocupado.
Preocupante, eu sei.
O meu eu-professora está travado pelo meu eu-filósofa. Comecei, digo, o meu eu-filósofa começou a questionar o quanto o eu-professora contribui dentro de sala de aula para que meus alunos formem um conceito – do qual não concordo – de ciência. Física para mim hoje é uma ciência inexata. Einstein, Newton, Galileu não eram gênios da ciência e sim da arte. De objetivo nem mais os números, para mim.
O meu eu-adulta se existe deve estar vagando pelo Universo. Se está em mim, certamente é mudo, surdo e cego. Não posso contar com ele. Ainda que eu saiba que não são os cabelos brancos e as rugas, não é o cérebro bem usado ou o corpo calejado, não é quilometragem rodada que nos apontam que chegamos à vida adulta e sim o fato de sabermos que há mistérios indecifráveis, perguntas cada vez mais profundas e incertezas infindáveis, mesmo sabendo de tudo isso, doutora, eu ainda me assusto em demasiado com a escuridão.
Quantos somos até agora? Contei cinco. Mas há muito mais.
Quero passar rápido pelo conflito eu-mulher versus eu-mãe. Nesta área, viro um clichezão. Você deve estar careca de ouvir mulheres que não sabem dosar cada um desses lados. Pode ter certeza que comigo não é diferente. Acho que a confusão maior tem se dado não com o eu-mãe e sim com o eu-escritora. Minha Vida é um Blog Aberto não é devidamente aceito e compreendido por ele-homem. Cheguei a essa conclusão. Aprendi a fazer arte com cenas do meu cotidiano, inclusive, com minhas inseguranças e minhas dores. Fui premiada com a literatura que consegui elaborar. Mas os textos nada dizem sobre o meu eu-inteiro. E se escrevo um texto feliz e publico para todos lerem, isso está longe de significar que estou imersa em um certo estado de graça. Somente aponta que eu vivi um momento bom. Não sei porquê cargas d´água as pessoas tomam a parte pelo todo e julgam como está funcionando o resto dos meus órgãos. Minhas postagens nas redes sociais apresentam o mesmo problema. A despeito de eu me expor muito, jamais me mostro por inteira. O que veem é uma porcentagem de um eu somente. Amigos têm me falado que me exponho demais e me aconselham a parar de agir assim. Isso me dói muito, doutora, porque é o mesmo que me pedir para não mais escrever. É o mesmo que pedirem que eu morra. Mas, de fato, não há um eu-mulher e um ele-homem que se entendam com o que julgam do meu eu-inteiro ao lerem a produção do meu eu-escritora.
Tenho muita pena de alguém morrer, doutora. O ideal seria conciliar, mas não está sendo possível. Não tenho medo de perder um braço, doutora, não é isso, mas como disse Clarice, a Lispector, cortar os defeitos pode ser perigoso. No meu caso, asfixiar um determinado eu. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Quem me garante que deixando de escrever e de mostrar uma pequena parte de minha vida para o público não perderei o indivíduo mais importante que me habita?
É possível, doutora, instituir uma ordem nessa habitação coletiva?
Não. Não me terminei ainda. Faltam, segundo as minhas contas, mais dezenove. E há ainda as subdivisões. Por exemplo, eu-mãe se divide em eu-mãe-do-Hideo, eu-mãe-da-Nara e eu-mãe-do-Yuki. Sou filha-do-meu-pai, filha-da-mãe e filha-da-puta. Eu-pilates, eu-corredora, eu-inerte. Eu-leitora, eu-leiteira, eu-literal, eu-literatura. Eu-escritora, eu-escrutínio, eu-escrachada. Eu-professora, eu-proferida, eu-professia, eu-prolixa, eu-proliferada. Eu-supermercado, eu-superficial, eu-supracitada, eu-superstição. Eu-quero, eu-querida, eu-quermesse, eu-querela. Eu-reflexão, eu-reflexo, eu-refratada, eu-refratária. Eu-cozinha, eu-lavabo, eu-banheiro, eu-quarto, eu três-quartos, eu-inteira.
Estou em pedaços, doutora.
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