Então você está com medo porque acha que a sua vida está prestes a desmoronar: paredes que você considerava firmes estão fora de prumo, há sinais de rachaduras no reboco, as lâmpadas no teto balançam sugerindo terremotos que se aproximam, pensa até em mudar para outras paragens, ninguém segura terremoto, você escora as paredes mas não põe muita fé no que está fazendo, escora outras, mas você é fraco demais para tanta confusão, parece que tudo é inútil, as coisas não se encaixam, sua alma se agita, há muito que você não conhece a felicidade de uma noite de sono feliz, cada manhã é uma angústia, seu corpo está perturbado, faz coisas que não deveria fazer, fere pessoas por onde passa, justamente as pessoas que você ama e que são a razão de ser da sua vida. É triste isto: que frequentemente sejam as pessoas amadas as que vão receber o veneno que se ajuntou em nós. Aí, ao sentimento de catástrofe junta-se o sentimento de culpa, como se você fosse a causa de tudo o que existe de errado.
Quando isso ocorre, a gente começa a sentir raiva e dó da gente mesmo. Essa combinação de sentimentos é letal. Uma vez vi uma maria-fedida chupando os sucos de uma lagarta: enfiou dentro dela uma pequena tromba e foi chupando, chupando, do mesmo jeito que se chupa iogurte com canudinho. A lagarta foi esvaziando até ficar como um saco de pele vazio. Cuidado! Os sentimentos de autopiedade podem fazer com você o que a maria-fedida fez com a lagarta: eles nos exaurem de nossas energias.
Aconselho-o a tomar um banho frio. Banho quente não. Dá moleza. Fuja de quem tem dó de você e deseja consolá-lo. Prefira a voz dura do bruxo D. Juan. O aprendiz de feitiçaria, Carlos Castanheda começou com uma conversa choramingas e logo recebeu do feiticeiro um golpe: “Sua cabeça é um saco de lixo. Você precisa ouvir a sabedoria da morte. A morte é a única conselheira sábia que temos. Sempre que você sentir, como você sente sempre, que tudo está errado e que você está prestes a ser aniquilado, volte-se para a sua morte e pergunte-lhe se é assim mesmo. Sua morte lhe dirá que você está errado. Nada realmente importa, fora do seu toque. Sua morte lhe dirá: ‘Eu ainda não o toquei’”.
A morte ainda não o tocou. Portanto, seus motivos de queixa não têm importância. Mais cedo ou mais tarde seus problemas vão se resolver, de um jeito ou de outro.
Há dois tipos de problemas.
Primeiro, os problemas reais: uma cólica renal, uma goteira, uma conta para pagar, uma perna quebrada, um pneu furado, os pratos do jantar para lavar, um amor que não deu certo, uma pessoa querida que morreu.
Esses problemas se resolvem de duas formas. Os pratos a gente lava, o pneu a gente troca, a perna quebrada se encana. Problemas que devem ser resolvidos sem reclamação e sem muito falatório, pois reclamações e falatórios, além de nada contribuírem para a solução dessas contrariedades, só servem para produzir irritação. Os faladores são especialistas nisso.
Outros não têm solução. O amor que não deu certo, a pessoa querida que morreu: só resta chorar. E o importante é enxotar os consoladores, que são a praga-mor daqueles que estão sofrendo. Os consoladores acham sempre que suas tolas palavras são capazes de encher o vazio do sofrimento.
Problemas, sofrimentos, frustrações são partes da vida. Não é possível evitá-los. Mas é possível sofrê-los com sabedoria.
Por isso cuide de seu corpo e de sua alma. Frequentemente as pessoas me perguntam: “Tudo bem?”. Eu respondo: “Nem para Deus, todo-poderoso, as coisas vão bem. As coisas não vão bem mas eu vou bem”. É como no avião: lá fora está uma terrível tempestade, nuvens pretas, não se vê nada, os raios iluminam o escuro, o avião pula como um cavalo bravo. E eu, já que não posso mesmo fazer coisa alguma, tomando o meu uisquinho. O medo é enorme. Mas entre medo sem uísque e medo com uísque, prefiro a segunda alternativa. Na vida é assim: tudo vai mal, mas preciso que o corpo e a alma sejam um centro de tranquilidade.
Mas essa tranquilidade não acontece por acaso. Ela é o resultado de disciplina.
Sugiro que o primeiro ato do seu dia seja um ato de defesa. Há uma série de encheções à sua espera: listas de coisas para fazer, compras, providências práticas, crianças a serem levadas à escola. Claro, você não poderá fugir dessas responsabilidades. Mas não deixe que sejam elas as primeiras a entrar dentro do seu corpo. Lide com elas com a sobriedade Zen. Caso contrário, elas tomarão conta do seu corpo e da sua alma e se transformarão numa legião de demônios a atormentá-lo através do dia.
Tire quinze minutos da manhã, antes de fazer qualquer coisa. Não é muito tempo. E você merece. Ponha uma música pra tocar. Há tanta coisa bonita. O canto gregoriano, as sonatas de Scarlatti, as sonatas para violino e piano de Bach, as mazurcas de Chopin (pura brincadeira), as Cenas infantis ou as Cenas de floresta de Schumann. Esses são gostos meus. Você terá os gostos seus. O importante é que, no início da manhã, a música seja cheia de paz.
Enquanto você ouve a música, leia. Estou me deleitando com a leitura do livro de Eclesiastes, e estou mesmo me atrevendo a uma tradução poética minha: “Neblinas, neblinas, tudo são neblinas”, diz o poeta. “O homem, por mais que trabalhe, poderá por acaso produzir algo sólido, que não seja neblina? Uma geração passa, outra geração lhe sucede – como a neblina; somente a terra permanece…”.
Esse sentimento de que tudo é espuma e areia tem um efeito tranquilizador. Tudo é neblina, tudo é espuma. Pense na praia, ao final do dia, arrasada pela praga dos humanos que a violentam de todas as formas possíveis. Vem a noite. A solidão. Sobe a maré. Pela manhã a praia é uma pele lisa, jovem, sem nenhuma cicatriz. Toda a loucura humana foi esquecida. Pois assim mesmo é a vida: tudo será esquecido – de sorte que não vale a pena nos afligirmos.
E reze o poema de Ricardo Reis, resumo da minha filosofia de vida:
“Mestre, são plácidas todas as horas que nós perdemos, se no perdê-las, qual numa jarra, nós pomos flores. Não há tristezas nem alegrias em nossa vida. Assim saibamos, sábios incautos, não a viver, mas decorrê-la, tranquilos, plácidos, tendo as crianças por nossas mestras, e os olhos cheios de natureza. À beira-rio, à beira-estrada, conforme calha, sempre no mesmo leve descanso de estar vivendo. O tempo passa. Não nos diz nada. Envelhecemos. Saibamos, quase maliciosos, sentir-nos ir. Não vale a pena fazer um gesto. Não se resiste ao deus atroz que os próprios filhos devora sempre. Colhamos flores. Molhemos leves as nossas mãos nos rios calmos, para aprendermos calma também. Girassóis sempre fitando o sol, da vida iremos tranquilos, tendo nem o remorso de ter vivido”.
Igual ao sábio das Escrituras é a Cecília Meireles: se a morte ainda não o tocou, trate de aprender a viver com sabedoria. A sabedoria não é garantia de felicidade. A vida não oferece garantias de felicidade para ninguém. Como disse Guimarães Rosa, “felicidade só em raros momentos de distração”. Mas a sabedoria nos livra dos sofrimentos provocados pela nossa própria loucura. Quem é sábio sofre pelas razões justas e, por isso mesmo, sofre com tranquilidade. A sabedoria nos traz paz de espírito. Que é aquilo que mais o coração deseja. Paz de espírito é como um campo batido pelo vento, como um riacho de águas limpas, como uma borboleta pousada sobre uma flor.
A cabeça é um útero terrível. Dela tanto podem sair flores e borboletas quanto charcos e escorpiões. De vez em quando ela é invadida pelos demônios das catástrofes e dos horrores – e aí não existe corpo que aguente. Os tais demônios são produtores de filmes, que ficam sendo exibidos em sessão contínua em nossa cabeça.
Imagem de capa: marvent/shutterstock
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