Transtorno de Personalidade Múltipla em “O Médico e o Monstro”

O escritor escocês Robert L. B. Stevenson compôs uma fascinante obra de perene valor literário: The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde (1886), publicada no Brasil sob o título O Médico e o Monstro é uma história que discorre sobre o conceito do bem e do mal existente na espécie humana.

O livro pode ser visto como uma notável fonte de estudo para psicologia humana, envolvendo a compreensão das teorias estruturais da personalidade, conforme detalhado por Freud, além de simbolizar perfeitamente o indivíduo acometido pelo transtorno dissociativo de identidade, processo mental caracterizado pela desintegração do ego, popularmente conhecido comodupla personalidade.

O Médico e o Monstro tem como protagonista o Dr. Henry Jekyll, um generoso médico bem sucedido e amplamente respeitado por possuir possui um brilhante intelecto, mas que, em determinado momento, se conscientiza da duplicidade de vida que leva ao perceber a parcela de maldade que reside dentro dele.

Era profunda a duplicidade do meu caráter. Muitos homens teriam confessado com orgulho certos erros. Eu, todavia, tendo em vista os altos propósitos que visava, só podia envergonhar-me dessas irregularidades: ocultava-as, com mórbida sensação de culpa e vergonha. Assim exigia a natureza das minhas aspirações, mais do que a própria degradação dos pecados; ia-se cravando em mim, mais do que na maioria dos mortais, esse profundo fosso que separa o bem do mal e divide e compõe a dualidade de nossa alma. […] Em cada dia, as duas partes da minha inteligência, a moral e a intelectual, atraíam-me mais e mais para essa verdade, cuja descoberta parcial foram mim condenada a tão pavoroso naufrágio: que o homem não é realmente uno, mas duplo. (Stevenson: O Médico e o Monstro, 1886).

Na novela, Dr. Jekyll consegue, por meio de seus experimentos científicos, criar uma fórmula (comparada com o álcool no decorrer do romance) que intervém no seu “normal” e desencadeia processos mentais e físicos dando origem a um ser misantropo de aparência grotesca e deformada. Através desta outra face de sua personalidade, ele pratica o mal sob o nome de Edward Hyde, livrando a figura do médico das críticas sociais.

Jekyll torna-se completamente dependente da mistura que utiliza para trocar de personalidade. Edward Hyde gradualmente se torna cada vez mais poderoso do que sua contraparte “boa”, sendo descrito como lado mais agradável dos dois. Em última análise, é a personalidade dominada pela maldade que leva à queda do Dr. Jekyll e sua morte. Isto porque o médico, nas últimas fases de sua lucidez, reconhece o perigo que o Sr. Hyde representa para a sociedade e altruisticamente decide acabar com ele.

A obra de Stevenson tem caráter profético. Poucos anos depois, os estudos de Sigmund Freud evidenciaram a face oculta da mente, o Sr. Hyde (o sobrenome é óbvio: hide significar “ocultar”) que se esconde atrás de cada dr. Jekyll. Os personagens do romance possuem manifestações características da teoria estrutural da mente proposta por Freud. Hyde é facilmente reconhecível como o id, que busca a gratificação imediata, com um instinto agressivo, e destituído dos costumes morais e sociais que precisam ser seguidos. Seu prazer provém da violência e o instinto de morte acaba por conduzi-lo a sua própria destruição. Dr. Jekyll representa, então, o ego, sendo consciente, racional e dominado por princípios sociais. Além disso, ao rotular Mr. Hyde como um “troglodita”, Stevenson estabelece uma relação com as teorias da evolução. Ele considerava Hyde selvagem, incivilizado e dado a paixão: em suma, um indivíduo pouco evoluído. Edward Hyde representa uma regressão a uma fase anterior, ao período mais violento do desenvolvimento humano.

A escolha de um médico como o personagem que se transformará num monstro assassino estabelece um paradoxo entre o crime que destrói uma vida e uma profissão que teoricamente se caracteriza pela luta contra a morte e a compaixão pelo ser humano, realçando o conceito de dualidade humana.

Curiosidades: A obra obteve tão grande sucesso que até os dias atuais o termo “Jekyll e Hyde” é utilizado pela socidade científica como sinônimo de desordem de personalidade múltipla.

Stevenson escreveu a história – supostamente com o auxílio da cocaína – em um curto período de tempo (3 a 5 dias), baseada em um sonho que teve.

O livro também é utilizado como demonstração de dependência química, já que mostra a excessiva necessidade que Dr.Jekyll tem da droga que sintetizou.

Por 

Fonte da matéria: Arte Médica

Encontre o livro O médico e o monstro aqui.

REFERÊNCIAS:
1.Shubh M. Singh; Subho Chakrabarti. “A study in dualism: The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”. Indian J Psychiatry. 2008 Jul–Sep; 50(3): 221–223.
2.SCLIAR, Moacyr, “A Paixão Transformada”, Companhia das letras, São Paulo, 1996
3.Stevenson, R. L. “O médico e o monstro”. Coleção L&PM Pocket, 2002.

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