Travessias

Travessias

Acostume-se com a ideia de que a maioria das nossas felicidades tem prazo de validade determinado; tais como as nossas tristezas. Somos feitos da alternâncias com prazos para ser e estar; e de urgências para nos definirmos. Por isso, aqui, seremos continuamente convocados a desfazer os nós, evitar os danos, reparar enganos, costurar amores, aprender com as dores, juntar os cacos, sentenciar de vida ou morte nossos planos, nossos laços, nossas bençãos. Entre as alturas, o chão; entre o fundo e a fossa, as alturas. As repetições nos ensinam tanto quanto, ou mais, que as novidades. Mas seja lá como for, nunca paramos. Acostume-se a isso. A natureza do ser humano é de travessia. Ponte que entre os balanços, escrevemos o sentido dos nossos capítulos passados e das nossas páginas futuras. Somos o conjunto das escolhas que nos escolhem para as direções dos nossos destinos. Acostume-se com a ideia de que há tão-somente provisórios descansos; e que entre certezas e indecisões, medos, riscos, prisões, asas, abismos e céus, nos saberemos, mesmo que venhamos a esquecer quem somos logo no próximo degrau. A vida é um constante e inevitável lembrar-se de si. E que é nesta e por esta lembrança, em que cruzaremos novas portas, outros caminhos, outros olhares, e sobreviveremos às outras perdas, outras mortes e novos corações partidos. A firmeza da vida serve-nos justamente para trabalhar a nossa; e ela nos cobra caro se não fizermos dela uma passagem, pois do contrário nunca chegaremos a nós mesmos.

Guilherme Antunes

contioutra.com - Travessias

+ Guilherme Antunes

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