Há dias em que sair da cama já se configura como um ato de coragem. Noites mal dormidas podem aparecer para uma visita indesejada sob os mais variados pretextos: desajustes financeiros, tristezas amorosas, pressões no trabalho, ou mesmo, uma insolente insônia que insiste em nos roubar o sono, sem a menor cerimônia. Em dias que começam assim, meio sem fôlego, morosos, pesados, temos a impressão de que a vida está a nos dizer “não”! Neste caso, devemos tratá-la com a deferência valorosa que dedicamos ao mais respeitoso adversário. Ofereçamos a ela a possibilidade de uma boa conversa; e, ouçamos com atenção o que ela tem a nos dizer.
A roda viva dos dias nos leva à perigosa possibilidade de acostumar com o atropelo das horas. Consumidos por tarefas mais ou menos automáticas, vamos dando conta das questões de rotina, qual operários numa linha de produção. Vamos agregando obrigações, sentimentos, necessidades e desejos, todos numa mesma engrenagem, como se fossem todos da mesma natureza. E, não são! Ao alinharmos tantas facetas diversas de nossa forma de funcionar, pasteurizando-as, perdemos a capacidade de mensurá-las e dar a cada uma delas o seu devido peso e valor.
Nenhum de nós acorda pela manhã e dá de cara com uma pitonisa, pronta a nos revelar previsões para o novo dia. “Evite a todo custo encontrar seu chefe!”; “Ligue para aquela pessoa interessante que conheceu no supermercado… Hoje vai rolar!”; “Em hipótese alguma, corte o cabelo!”; “Adie a viagem!”; “Aposte todas as fichas naquele projeto maluco!”. Nada disso! Cada dia guarda em si, uma caixa de Pandora! E o único jeito de descobrirmos o que nos reserva o destino é beber algumas doses de ousadia e encarar o imprevisível.
Abra a caixa desse dia novo em folha com a mesma ansiedade que uma criança abria antigamente um embrulho no dia de Natal (hoje em dia todo mundo já sabe o que vai ganhar, uma chatice tremenda!), e tudo bem se saírem seres alados endiabrados e cheios de ideias mirabolantes pra testar a sua paciência, força ou coragem. Aceite o desafio, dobre a aposta, pague pra ver! Inúmeras vezes as coisas realmente boas da vida começam numa enorme confusão.
Confusões são cheias de possibilidades. E possibilidades são como órgão vitais, sem elas não há vida, nem dentro, nem fora de nós. Quem fecha a porta às confusões da vida, abre mão de se sentir vivo de verdade. Quem se apega demais à segurança da previsibilidade dos dias, escolhe uma vida em câmera lenta, cuja trilha sonora é uma réplica daquelas canções repetitivas de uma caixinha de música.
Rotina em exagero, deixa tudo meio embaçado; nada de riscos, nada de imprevistos e o tesão da vida reduzido a zero. É bem isso! A excitação depende organicamente do imprevisto, da surpresa, da novidade. O tempero de viver é baseado na variação das escolhas, dos percursos e dos resultados. É bem verdade que há dias em que ficamos sem entender o que é que a vida quer da gente.
Há dias em que temos a nítida sensação de que os roteiristas da nossa vida vararam a noite, reunidos em mirabolantes teorias conspiratórias a planejar artimanhas para testar-nos a paciência. Há dias em que parecemos protagonistas de algum jogo de sobrevivência numa selva de desafios impossíveis. Há dias em que a vida olha bem na nossa cara e diz com a maior tranquilidade um sonoro, redondo e indiscutível “NÃO!”.
É bem nessa hora que precisamos tomar posse da palavra; encarar a vida de volta e mostrar a ela que somos dignos de seus desafios. Que somos capazes de transformar essa negação em lanças contra o comodismo e escudos contra a vitimização. Porque o que o mundo espera de nós é que não nos submetamos resignadamente às suas provocações; mas, sim, que tenhamos o que responder quando a vida nos afrontar com suas surpreendentes, perturbadoras e imprevisíveis perguntas.
A vida, com seus “NÃOS”, caprichosamente nos coloca diante de perguntas para as quais não temos respostas. Ponto pra nós! A falta de respostas nos leva à maravilha inaugural do início do caminho. É preciso refazer o percurso. Procurar os desvios. E, na confusa sensação de ter sido confundido com outra coisa que não somos nós, nos reinventamos; descobrimos talentos absurdos. Vamos além! Abençoadas sejam as perguntas que nos desestabilizam, nos tiram do sério, da rota, do prumo. Graças a elas acordaremos de um sono profundo de mesmice e mediocridade e faremos por merecer a honra de estarmos vivos!