“Sofrer é uma escolha como outra qualquer. O que todos queremos é amenizar a dor do tombo, a dor do absurdo que é existir e saber que as únicas coisas que existem realmente são aquelas que não podemos explicar.
Há os que bordam azuis, escrevem poemas, constroem poentes, ensinam o alfabeto, cantam tons secretos, trançam palhas e cabelos, plantam açucenas numa manhã de abril. E há os que sofrem.
A existência acontece naquilo que criamos.
Daí, se não conseguimos construir poentes ou plantar açucenas, sofremos! Sofrer é, em última — ou primeira, quem pode saber?! — instância, fazer a manutenção de uma vida que já não consegue criar a própria existência.
O sofrimento é como uma capa de chuva: nós a usamos toda vez que o tempo turva apesar de saber que ficaremos ensopados do mesmo jeito”.
Lembrei deste fragmento do meu livro A Louca do Castelo quando o título do filme “Um dia essa dor lhe será útil” saltou da tela do Netflix para dentro dos meus olhos.
Continuei olhando o cardápio, mas nada parecia me apetecer naquela noite fria.
Dor? Não, obrigada. Não tenho aptidão para o sofrimento, nem para a dor – embora eu sofra pra chuchu (como qualquer mortal) e por muita abobrinha.
No entanto, a palavra do título era “dor” e não “sofrimento”. E como aprendi – dizem que com o poeta Drummond – que “a dor é inevitável, mas o sofrimento opcional”, acabei retornando para o início do cardápio, respirei fundo e fiz o pedido.
Com roteiro linear, alguns clichês – como o do garoto solitário que gosta de ler -, atuações impecáveis de Toby Regbo, Marcia Gay Harden e Peter Gallagher, entre outros, e muita, muita poesia, a adaptação do livro de Peter Cameron para o cinema, cujo título faz uma menção a Ovídio – “Sê paciente e resistente; um dia esta dor ser-te-á útil” – encanta à primeira garfada:
Já na abertura do filme, o off:
“Queria que o dia todo fosse como o desjejum: quando as pessoas ainda estão conectadas aos sonhos, focadas em si, e não prontas para se comprometer com o mundo. Eu estaria bem se fosse sempre café da manhã”.
O dono desta fala é James Sveck, garoto de 17 anos que experimenta a febre da adolescência no seio de uma família disfuncional, porém interessante, visceral, na cidade de Nova York; que não consegue se sentir parte do todo e por isso tudo lhe afeta e/ou parece lhe faltar.
Inteligente, sensível, tímido, poético, o protagonista não vê motivos para se relacionar com pessoas – e com o mundo – que não lhe acrescentem nada além de mais estranheza. A única pessoa com quem James gosta de conversar é a avó materna, uma senhora cheia de vida, entusiasmo e beleza no jeito de olhar; uma bailarina que escuta música no jardim e o encoraja a cometer pequenas loucuras.
O filme de Roberto Faenza também tem passagens divertidas – afinal, trata-se de uma comédia-dramática, seja lá o que isso queira dizer -, porém não daquelas que provocam altas gargalhadas, mas riso frouxo, solto, sutil.
“Um dia essa dor lhe será útil” nos mostra, sobretudo, que é preciso aprender a dizer e não apenas falar: é dizendo o que sentimos e o que tememos; é mostrando nossa fragilidade e nossa loucura, com delicadeza e coragem, que podemos acessar o coração do outro, do contrário, nada feito.
Uma oportunidade divertida e tocante de aprendermos mais uma vez que a dor, a náusea, o desconforto, o desamparo, o não saber-se, fazem parte da vida, todavia cabe a nós escolhermos a melhor maneira de lidar com essas tormentas: se boiando e deixando a maré baixar, tentando ver beleza no céu estrelado em alto mar, ou batendo os braços, engolindo água e nadando até cansar e desmaiar.
NOTA DE RODAPÉ
Definitivamente eu não entendo as pessoas que escrevem sinopses. Eis a sinopse do Netflix: “Um adolescente perdido num mar de doenças familiares encontra conforto e aceitação na companhia de sua avó rebelde”. Detalhe: não há doença no filme e a avó não é rebelde, é apenas acordada para a vida.
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(imagem: google)