Na vida acelerada do mundo de hoje, todos desejam ser espertos, vivos e astuciosos.
Ninguém quer ficar para trás – quando você está indo, os outros já estão voltando. Ninguém mais diz frases com segundas intenções: dizem coisas com terceiras, quartas e quintas intenções. Frases que, com sorte, um leigo no assunto precisa de várias horas para decifrar e talvez dois ou três dias para imaginar uma resposta à altura.
Em compensação, alguém que diz diretamente aquilo que pensa acaba provocando escândalo e mal-estar. É imediatamente catalogado como perigoso e tratado como idiota. A sinceridade parece contrariar as normas da convivência e da boa educação modernas. Assim, as pessoas bem educadas são amáveis, mas nem sempre se deve acreditar no que dizem.
A idiotice é um tema vasto, com muitos aspectos diferentes, e está inscrita com destaque na cultura brasileira. Um exemplo disso são as tradicionais piadas de português. Elas são uma projeção da brasilidade. No fundo, os portugueses idiotas das piadas somos nós. Os episódios que envolvem Manuel, Joaquim e Maria são todos parte da alma do nosso país – tanto é assim que só são conhecidos no Brasil. Em Portugal, ao contrário, circulam piadas de brasileiros.
É certo que, quando examinamos a questão da inteligência e da idiotice, surgem algumas perguntas indiscretas. O que é inteligência? O que é burrice? Quantos tipos há de idiotas?
Podemos dizer que inteligência é a capacidade de perceber o real. Como há realidades muito diferentes no mundo, não existe um tipo único de inteligência. Cada situação da vida requer um tipo específico de percepção, e por isso as inteligências são múltiplas. A idiotice e a burrice podem ser definidas como a incapacidade de perceber o real, e são tão variadas quanto as inteligências. Há, portanto, muitos tipos de idiotas. Alguns deles, inclusive, são espertalhões. Sim, há muitos idiotas que passam por inteligentes, e também grande número de pessoas inteligentes que passam por idiotas.
Além disso, quem é inteligente em uma área da vida pode ser burro em outras. Você é esperto em política e burro na hora de jogar futebol. Sua namorada pode ser menos intelectual que você, na hora de discutir filosofia, mas há aspectos da vida em que ela coloca você no chinelo. Há coisas que seus filhos fazem bem melhor que você, como, talvez, compreender as sutilezas de um videogame ou computador. Felizmente, ter sabedoria não é saber tudo. Ter sabedoria é saber o mais importante – e administrar bem os seus talentos.
Dos inúmeros tipos de idiotas, um dos mais interessantes foi examinado por François Rabelais, o escritor francês do século 16. Ele abordou a imbecilidade doutoral específica dos “eruditos” que usam palavras complicadas para não dizer coisa alguma. Um deles – conta Rabelais – fez certo dia uma longa pesquisa para saber “se uma entidade imaginária, zumbindo no vácuo, é capaz de devorar segundas intenções.” Outro queria saber “se uma idéia platônica, dirigindo-se para a direita sob o orifício do Caos, poderia afastar os átomos de Demócrito”. Um terceiro investigava “se a frigidez hibernal dos antípodas, passando numa linha ortogonal através da homogênea solidez do centro, podia, por uma delicada antiperístase, aquecer a convexidade dos nossos calcanhares”. Rabelais qualifica tais idiotas eruditos como professores cegos de discípulos cegos, “que tateiam em um quarto escuro à procura de um gato preto que não está lá”. Tais indivíduos eram precursores de Rolando Lero, o grande erudito que iluminou a televisão brasileira nos anos 1990. Não é de todo impossível encontrar esse tipo de pesquisador fazendo teses de pós-doutorado em certas universidades.
Conheço seres humanos que têm tanto medo de parecer burros que aplaudem – ou pelo menos fingem que compreendem – esse tipo de raciocínio longo, difícil, sem significado algum. Mas tal constrangimento é desnecessário: deixando de lado o medo de parecer idiotas, perderemos menos tempo fingindo e seremos mais felizes.
O exemplo de Albert Einstein, um dos maiores gênios da ciência moderna, é ilustrativo. No início da vida, ele recusou-se a falar até os três anos de idade. Seus pais – pessoas sensatas – pensavam que fosse retardado mental. Mais tarde, quando Einstein ingressou na escola, ele foi novamente considerado imbecil. Seu biógrafo é obrigado a admitir:
“Para os colegas de classe, Albert era uma anomalia que não demonstrava interesse nenhum pelos esportes. Para os professores, era um idiota que não conseguia decorar nada e se comportava de modo estranho. Em vez de responder imediatamente a uma pergunta, como os outros alunos, sempre hesitava. E quando respondia, movia os lábios em silêncio, repetindo as palavras.”
Décadas mais tarde, Einstein deu o troco. Ele qualificou o nosso moderno sistema educacional como uma estrutura que reprime a inteligência e busca fabricar idiotas obedientes:
“A humilhação e a opressão mental imposta por professores ignorantes e pretensiosos causam danos terríveis na mente jovem; danos que não podem ser reparados e que geralmente exercem influências maléficas na vida futura.”
E ainda:
“A maioria dos professores perde tempo fazendo perguntas para descobrir o que o aluno não sabe, quando a verdadeira arte consiste em descobrir o que o aluno sabe ou é capaz de saber.”
O sábio, o santo e o idiota têm muito em comum, não só entre si, mas também com as árvores e os animais. Todos eles vivem em um estado de comunhão com todas as coisas que é independente do pensamento lógico. Isso contraria a inteligência situada no hemisfério cerebral esquerdo, que rotula e classifica todas as coisas. Essa inteligência gosta de colocar-se como se tivesse o monopólio da consciência. Esse, aliás, é um dos grandes obstáculos para a prática da meditação: a mente pensante não aceita passar o poder à mente que contempla e que compreende a verdade sem necessidade de pensamentos.
A primeira frase dos famosos “Ioga Sutras de Patañjali”, o tratado milenar sobre Raja Ioga, afirma: “Ioga é a cessação das modificações da mente”. Para alcançar a hiper-consciência, o estado mental do êxtase divino, é necessário paralisar momentaneamente a mente inferior. O sábio é um ser que renunciou à inteligência convencional e optou por uma percepção que a mente comum não consegue captar. Por isso, mesmo no século 21, se aquele que ingressa no caminho espiritual não tiver certos cuidados, pode ser considerado louco ou idiota pelos parentes e amigos. Mas, do ponto de vista do sábio, a situação se inverte e idiota é aquele que fica preso à lógica do mundo externo.
O ser humano geralmente vive imerso em ilusões que ele mesmo criou. Para obter a sabedoria, ele deve aprender algumas coisas e desaprender outras. Helena Blavatsky escreveu:
“A primeira condição necessária para obter autoconhecimento é tornar-se profundamente consciente da ignorância; sentir com cada fibra do coração que somos incessantemente iludidos. O segundo requisito é uma convicção ainda mais profunda de que tal conhecimento – um conhecimento intuitivo e seguro – pode ser obtido por esforço próprio. A terceira condição, a mais importante, é uma determinação indômita de obter e enfrentar aquele conhecimento.”
Quase todo o potencial da mente humana ainda está por ser desenvolvido. A ciência reconhece que usamos uma parcela muito pequena do cérebro. O problema não é, pois, que sejamos um tanto limitados mentalmente. O lamentável é que, sendo limitados, nos consideramos extremamente espertos. O filósofo Sócrates, escolhido como o homem mais sábio da Grécia, explicou:
“Eu e os homens notáveis de Atenas nada sabemos, e a única diferença entre eu e eles é que eu, nada sabendo, sei que nada sei, enquanto que eles, nada sabendo, pensam que sabem muito”.
Seguindo na mesma linha de raciocínio, o pensador espanhol Balthazar Gracián constatou:
“O maior tolo é aquele que acha que não é, e que só os outros são. Para ser sábio não basta parecer sábio, nem, muito menos, parecer sábio a si próprio. (….) Embora o mundo esteja cheio de tolos, ninguém se julga um deles, nem receia ser um.”
Quando superamos a necessidade de parecer inteligentes e deixamos de lado o medo de parecer idiotas, libertamos nosso potencial criativo e a nossa capacidade de conhecer novos aspectos da consciência. Quando temos coragem de colocar toda nossa mente em algo, parecemos tolos e distraídos do ponto de vista daqueles aspectos do mundo que optamos por ignorar completamente. Um exemplo claro disso é dado pela história do grande cientista que caminha absorto pela rua, perto da sua Universidade, quando encontra um colega e param para conversar um minuto. Ao se despedirem, o cientista pergunta a seu colega:
“Diga-me, amigo, em que direção eu estava caminhando?”
“Você estava indo para lá”, aponta o outro.
“Ah, obrigado”, agradece o sábio distraído. Isso significa que eu já almocei.”
A relativa idiotice dos sábios tem outro exemplo no caso do famoso escritor inglês G. K. Chesterton. Ele morava em Londres quando ainda não havia telefones, e vivia em um mundo tão abstrato que, certa vez, ficou aguardando notícias de sua esposa em uma agência de correios após mandar o seguinte telegrama para ela:
“Querida, estou no mercado Harborough. Mas onde eu deveria estar, para fazer o quê?”
No romance “O Príncipe Idiota”, o escritor Fiódor Dostoievsky descreve um Cristo moderno que aparece na Rússia com 26 anos de idade – e se comporta como um idiota desde todos os pontos de vista práticos. Ele não tem a couraça de auto-defesa que caracteriza o tipo moderno de cidadão “esperto”. Por isso as pessoas riem da cara dele e ele acha graça junto com os que o desprezam. Chamam-no de burro – e ele concorda, amavelmente, porque só sabe falar a verdade – e percebe que, realmente, não tem a astúcia dos seus perseguidores.
Leon Muishkin, o Cristo-príncipe de Dostoievsky, é epiléptico. O escritor descreve os seus ataques como momentos de iluminação mística: “Não podia duvidar nem admitir sequer a possibilidade de dúvida: naqueles momentos havia, com efeito, beleza e oração, e aqueles instantes eram a maior síntese da vida (…). [E ele] via claramente que a conseqüência evidente desses minutos indescritíveis era a imbecilidade, o obscurecimento das suas faculdades, o idiotismo.”
Dostoievsky está certo em mais de um sentido. Epilepsia à parte, há um fato que poucos estudiosos do caminho do autoconhecimento confessam abertamente: quando se desperta a inteligência espiritual, perde-se, irremediavelmente, a inteligência astuciosa que permite coisas como mentir com habilidade, usar a lisonja na medida certa e falar a verdade só quando ela traz vantagens.
Desse despertar vem a sensação de nada saber diante do mundo. A expansão mística da consciência traz consigo uma inocência idiota em relação à realidade externa. É por isso que os sábios renunciam à agitação e a todas as formas de esperteza associadas com ela, e preferem optar por uma vida retirada. Quem deseja alcançar a consciência celestial deve abandonar a inteligência egoísta e assumir, em certos assuntos, a aparência de um abobado.
“A razão expulsou Deus com chicotadas para o meio dos loucos”, escreveu Louis Pauwels. E o escritor sufi Idries Shah – grande pensador do islamismo místico– escreveu um livro intitulado “A Sabedoria dos Idiotas”. Na abertura da obra, Idries Shah explicou:
“Aquilo que os homens de pensamento estreito imaginam que seja sabedoria é freqüentemente considerado loucura pelos sábios sufis. Assim os sufis, por sua vez, chamam a si mesmos de ‘idiotas’. Por uma feliz coincidência, a palavra árabe que significa ‘santo’ (wali) tem a mesma equivalência numérica que a palavra que significa ‘idiota’ (balid). Assim, temos dois motivos para ver os grandes sufis como os nossos Idiotas.”
A astúcia impede o autoconhecimento. A milenar tradição chinesa conta que certa vez Confúcio procurou Lao-tzu – fundador da filosofia taoísta – e fez a ele uma complexa consulta sobre uma questão ritualística que considerava de grande importância. Desprezando a pergunta sofisticada, o mestre disse a Confúcio:
“Você precisa abandonar a sua esperteza e deixar de lado a espada da sua ambição. Os grandes sábios freqüentemente parecem tolos e estúpidos. Aqueles que obtiveram o verdadeiro aprendizado não insistem em ostentar o seu conhecimento.”
Um dos maiores místicos cristãos de todos os tempos, São João da Cruz, estudou filosofia clássica grega na juventude. O modo como ele descreve poeticamente o paradoxo do “nada saber para perceber tudo” coincide com a tradição socrática, mas também pode ser visto como uma ioga:
“Para chegares a saborear tudo,
Não queiras ter gosto em coisa alguma.
Para chegares a possuir tudo,
Não queiras possuir coisa alguma.
Para chegares a ser tudo,
Não queiras ser coisa alguma.
Para chegares a saber tudo,
Não queiras saber coisa alguma.”
E João da Cruz descreveu o seu êxtase místico nesses versos:
“Entrei onde não sabia,
e fiquei sem saber,
toda a ciência transcendendo.
Eu não sabia onde entrava,
porém, quando lá me vi,
sem saber onde estava,
grandes coisas entendi.
Não direi o que senti
pois fiquei sem saber,
toda a ciência transcendendo.
De paz e de piedade
era a ciência perfeita,
em profunda solidão,
diretamente entendida;
era coisa tão secreta,
que fiquei balbuciando,
toda a ciência transcendendo.
Estava tão enlevado,
tão absorto e desatento,
que meu sentido ficou
de todo sentir privado;
e o espírito dotado
de um entendimento sem entender
toda ciência transcendendo.”
Embora seja verdade que nem todo idiota alcança a iluminação, é certo que todo iluminado tem algo de idiota e parecerá um tolo desde mais de um ponto de vista.
O aprendiz da arte de viver deve romper os limites das chantagens do que é “politicamente correto” e deixar de lado os mecanismos da ignorância coletiva que buscam impor falsos consensos em função dos interesses desse ou daquele esquema de poder.
Mas, para fugir da idiotice coletiva organizada – com sua psicologia de rebanho que proíbe o indivíduo de pensar por si mesmo – é indispensável vencer o medo de que nos seja colocado o rótulo de ovelha negra, ou de idiota. Só assim poderemos viver com responsabilidade própria e independência pessoal. Há uma história de Ramakrishna, o sábio indiano do século 19, que ilustra bem esse ponto:
“Era uma noite completamente escura, séculos atrás. De repente, um sujeito acende uma tocha para iluminar seu caminho e vai até a casa do vizinho. Ele quer pedir fogo, porque a noite está demasiado escura. Depois de muito gritar e bater na porta, o vizinho finalmente abre a porta, ouve seu pedido e responde: ‘Ah, ah, você é muito imbecil! Raciocine! Você já tem uma tocha acesa na sua mão!’ “
Todos nós corremos o risco de fazer como o pobre coitado que bateu na porta do vizinho. A verdade eterna e a fonte da felicidade estão em nossas próprias mãos. Só dependem de nós. Mas insistimos em procurá-las nas coisas externas e pedi-las de outras pessoas, renunciando à autonomia da nossa caminhada.
Os sábios, como os idiotas, são íntegros. Eles não fingem que são inteligentes e não têm medo de errar. Tentam, erram e conhecem o sabor da derrota. Mas, quando acertam, são geniais. O idiota de hoje pode ser o sábio de amanhã, graças à experiência adquirida. Em compensação, aquele que não possui ânimo para tentar não tem chance alguma de aprender.
Por isso devemos criar uma cultura em que é permitido a cada um cair e levantar livremente. Porque somos todos apenas aprendizes. Erramos e aprendemos o tempo todo, e devemos estimular em cada ser humano a coragem de buscar – mesmo tropeçando – os seus sonhos mais elevados. Banindo da nossa cultura o medo ao ridículo, cada um se permitirá um pouco mais de deselegância e autenticidade em sua maneira de viver.
Notas do texto: NOTAS