“A vida do outro é para ser olhada e compreendida. E tantas vezes ocorre o contrário: ela é virada do avesso, perscrutada e mal falada, incompreendida”. Foi meu pensamento num daqueles cafezinhos que vamos à tardinha para arejar a mente. Gosto de aproveitar todos os espaços e todas as pessoas, a qualquer momento.
Há dias não olhava nos olhos toda aquela gente que passa por mim na rua, não chegava tão próximo, não via seus movimentos, nem sentia seus cheiros atravessando a fatia do vento quando passam roçando em meus braços. Era gente nova, jamais vista antes nas calçadas.
Parei por alguns segundos, como se anulasse qualquer presença diante de mim, e pensei: “…gosto tanto de imaginar a vida das pessoas… “. Talvez seja por isso mesmo que eu goste tanto de ouvir e guardar as histórias como se fossem minhas. É a forma mais crua que encontro de me olhar e sentir quem sou. Perguntar sobre o que gosto e o que não gosto.
Outro dia uma amiga me falou sobre essa mania de olhar a pessoa e imaginá-la como é em seu mundo particular: “Um bando de estranhos! Não me interessa a vida deles. ” – confessou, já um pouco irritada quando lhe falei que a vida de cada pessoa daria um filme magnífico nas mãos de Woody Allen.
“Ele sim, desvendaria cada mundo de forma leve e profunda ao mesmo tempo. Daria minha vida para ele fazer um filme, não sei onde eu iria parar, mas pagaria para ver! ” – disse a ela, sem pensar muito naquela confissão que ouvia há poucos minutos.
Essa história de olhar o outro, de criar ficções a seu respeito, de inventar, dar vida a seres que nem sequer existem no universo real é um acontecimento fantástico na vida de qualquer ser humano capaz de tal proeza. Experimente assistir uma palestra ou falar com um escritor de ficção, só para ver até onde a inventividade dele pode chegar. Não terá limites, nem para o escritor, nem para você, que estará totalmente envolvido.
É através desse outro que muitas vezes está a grandeza do que não se pode sentir. Ali está a própria imensidão, o inexato, o ambíguo, o mistério. E é muito mais difícil invadir uma pessoa quando ainda não se sabe por onde entrar em si mesmo.
A certa altura é um labirinto humano, algo como caminhar e os passos serem inalcançáveis. Onde estará esse tal caminho? Para onde devemos ir? Onde encontrar o caminho para buscar o outro dentro da gente?
Esse outro que sou e que tantas vezes se confunde com a minha imagem verdadeira. Tenho receio dessas faces anônimas que vou topando pelo caminho e me provocam com risos de confissão: “Você sou eu. É assim, exatamente como sou.” Não é tão fácil entregar assim nossa natureza ou parte do que somos. É complexo, desconcertante. Ficamos a par da descoberta do que não desejamos: obviedades.
Queremos ser únicos e ter uma história de vida tão interessante quanto a daqueles filmes woodyallianos dos anos setenta, que chegam hoje até nós ainda com ares de novidade. É assim que queremos expor nossa vida, contar nossas histórias ao mundo: para arregalarem os olhos, abrirem as bocas e eriçarem os pelos.
Saio do café atordoada. Há muitos dias não via tanta gente. Dobro a esquina e continuo pensando. Paro. Olho disfarçadamente em direção ao café, como se lá, todas as pessoas que vi, se amontoassem e desejassem contar suas histórias de uma só vez.