Por Lúcia Costa
É que todos tinham dois olhos, mas ele, apenas ele, não podia dormir com o par de pálpebras cerrados; nascera apenas com um olho, o esquerdo, no espaço do olho direito, havia uma escuridão.
Na infância, os amigos zombavam, xingando-lhe de “caolho”, “esquerdinha”, “lanterna queimada”. Nunca se importou muito com essa algazarra; via o igual e não sentia a necessidade que o direito lhe corrigisse por uma razão simples: como sentir falta de algo que nunca teve? Sentia desejo por um olho direito, não falta.
Cresceu, cursou faculdade, conheceu o amor pelas costas, chorou único a dor que é de muitos: o desprezo de quem nos parece arco-íris. Ainda se apaixonou uma meia dúzia de vezes, também lhe foi negado o perfume do corpo, o lábio molhado, o suor do enlace.
Trabalhou muito, comprou casa, adotou um cão, adotou a idosa mãe, enterrou o pai dois meses depois. Sentiu perder uma de suas pernas, aquela que lhe mostrou o passo primeiro dos homens. Chorou em desespero, e o olho-escuridão derramou a única lágrima que conseguiu formar. A lágrima entardeceu e escureceu enquanto rolava pelo rosto magro. No olho direito, milhares de lágrimas eram manhãs.
Usou óculos escuros, uma fenda de pirata durante o carnaval, um boné esquisito que camuflava o parente esquerdo. Agora desejava dois olhos, agora que já tinha visto todo o Mundo e definia bem as cores, agora que não lhe faltava reconhecimento geométrico e sabia onde se acumulavam essências masculina e feminina, agora que sabia que o menino, mais tarde, é o homem.
A mãe enxugou-lhe a lágrima no olho único e fechou para sempre os próprios. O cão acompanhou sua companheira idosa até a última morada e decidiu residir entre as cruzes.
Ele não era mais um homem de um olho só, era o homem de um olho só, só. Considerou sua casa uma lápide esquerda, o amor, uma vereda à esquerda. Morreu do lado esquerdo, tombou do lado esquerdo e foi enterrado à esquerda da mãe, de onde lhe espiava, com dois olhos bem abertos, o cão.
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