Por Nara Rúbia Ribeiro

Quando peguei o documento que relatava os antecedentes do adolescente, fiquei impressionada. Dezoito processos se acumulavam nas prateleiras daquele Juizado da Infância e Juventude. Furto, roubo, lesão corporal, ameaça, e mais furto e mais roubo. A lista de condutas praticadas por ele que são descritas, pela lei, como “crime” era, de fato, muito considerável.

É um daqueles casos em que olhamos para o adolescente com total desesperança, sem conseguir deixar de lado o olhar de desaprovação. Um jovem estudante de Direito chegou a comentar: “Num caso desse, só matando”. O que ele não sabia é que aquele adolescente já havia morrido há, pelo menos, 11 anos.

 Aquele “bandidinho repugnante”, assim se referia a ele uma das vítimas, “é um lixo, Doutor, ele fede. Isso nem é gente”, fora abandonado pela mãe quando tinha apenas 6 anos de idade. Deixado nas ruas de uma cidade com cerca de 300 mil habitantes, num semáforo. Segundo me disseram, a mãe foi morar com um senhor que, embora tivesse o bom senso de sustenta-la, não aceitava o menino.

A partir de então, essa criança cresceu na rua, praticando favores sexuais aos meninos maiores em troca de alimento, furtando uma coisinha aqui e ali. Sofreu toda sorte de abusos, toda forma de violência que se possa imaginar.

A nossa Constituição Federal estabelece que é dever da família, do Estado e de todos nós, a “sociedade”, fazer com que cada uma de nossas crianças tenha os seus direitos integralmente garantidos.  Mas parece-me que esse discurso não é muito popular.  Nas recentes eleições, não percebi qualquer séria discussão sobre políticas públicas de amparo a crianças e adolescentes que necessitem de proteção e cuidados específicos do Estado. Vi, com sangue nos olhos, diversos candidatos destilarem seu ódio pleno aos menores infratores, falando na necessidade de penas duras e redução da maioridade penal.

Mas ninguém fala (será por quê?) em prender quem passe de olhos fechados diante dessas inúmeras crianças e adolescentes abandonados à própria sorte,  cuja  vida só ensinou sentenças de dor, de morte e de revolta íntima.

A testemunha, então, verberou:

-“Doutor, tem que prender esse troço. Não dá pra andar na rua seguro com isso  solto, não. Daí perguntei:

– Ele ameaçou o Senhor de que jeito?

– Colocou a mão dentro da blusa, Doutora. Falou que se eu não obedecesse eu ia me dar mal.

– E o que ele exigiu do Senhor, pode dizer? Ele queria o quê?

– Sim, Doutora. Ele queria água e comida.

Senti uma imensa vontade de rasgar o papel com os antecedentes do menino. Aquele papel não servia à condenação ou à absolvição dele. Aquele papel condenava a todos nós. Documento inconteste da hipocrisia do mundo e da precariedade, da inconsistência de uma palavra tão recorrente na boca dos “cidadãos honestos”: justiça.

Nara Rúbia Ribeiro

Escritora, advogada e professora universitária.

Recent Posts

O romance apimentado da Netflix que é ideal para assistir tomando uma taça de vinho

Um filme intensamente sedutor para assistir no conforto da sua privacidade depois de colocar as…

9 horas ago

Novidade na Netflix: A série cheia de reviravoltas que conquistou o público e não sai do TOP 10

Esta série não sai do TOP 10 da Netflix desde a sua estreia; saiba os…

10 horas ago

Por que casais falam com voz de bebê?

Se você já presenciou um casal adulto conversando em tons infantis, com vozes suaves e…

21 horas ago

Nova série de suspense da Netflix tem 6 episódios viciantes e um desfecho surpreendente

Você não vai querer sair da frente da TV após dar o play nesta nova…

1 dia ago

Somente 3% das pessoas é capaz de encontrar o número 257 na imagem em 10 segundos

Será que você consegue identificar o número 257 em uma sequência aparentemente interminável de dígitos…

1 dia ago

Com Julia Roberts, o filme mais charmoso da Netflix redefine o que é amar

Se você é fã de comédias românticas que fogem do óbvio, “O Casamento do Meu…

2 dias ago