Um minuto de suspiro.

Às vezes, um suspiro para voltar a respirar. Sair do sufoco das emoções engarrafadas. Afinal, não podemos sentir em tempo integral, mesmo que o sentimento esteja lá. É imperativo das morais que os deixemos abafados, aprisionados no fundo do quarto, embaixo do colchão, nos fungos da infiltração do teto do banheiro, nas gostas geladas que entremeiam o chuveiro quente, na mala mofada esquecida no porão, nas roupas fedendo a naftalina pelo desuso, nos vinhos envelhecendo na adega esperando pelo dia especial, nas covas abertas esperando pelo corpo. É preciso sentir no momento certo, como se fosse uma prescrição de tóxico para aliviar a tensão.

Não há pausa no tempo de ninguém a não ser pela licença médica ou legal. Nossas emoções condenadas ao quadrado. Até o luto é regulamentado. Dois dias para sofrer a perda – somente a prevista em legislação; 4 meses para ser mãe – nunca sem riscos; 20 dias para ser pai, 5 pelo casamento, algum tempo pela depressão atestada, com sorte um acordo pelo desastre imprevisto em lei a ser pago com juros e correção infinita, também conhecida pelo apelido de “gratidão”. Tudo aceito com um sorriso de compensação. Para sentir, é preciso pedir licença. Mas só nestes extremos, quando é legitimado pela convenção. A todas as outras emoções, temos as horas de sono para perder, os suspiros apertados quando ninguém ouve, um momento de reflexão na privada coletiva. O silêncio. Acidentes de humanidade, do seu ódio, da sua angústia, do seu amor escapolem em letras engarranchadas nas portas dos banheiros juvenis, tão logo, em alguns anos, reprimidas por pílulas no intervalo de almoço. A todos o direito de manifestação contida em sua irônica linha do tempo.

As paixões suprimidas dão lugar à amargura e formam opiniões – todas as frustrações do não vivido tomam forma e força nas opiniões públicas. É preciso lidar com todas as angústias pessoais, é preciso lidar com todas as angústias mundiais, subindo e descendo escadas, atravessando a rua ou esperando o sinal, nos elevadores, nas filas, na mesa de escritório, operando máquinas, fazendo ligações. Alguém consegue, realmente, ignorar? Um espaço na agenda em branco para viver é uma utopia que precisa ser negada. Alguns se refugiam em lazeres ritualísticos, se anulam, se consomem, uma distração qualquer, qualquer coisa que faça esquecer de si mesmo. Os que não conseguem se abandonar tão a esmo podem preferir o sono (induzido), outros recorrem em desespero à busca pelo nirvana ou pela salvação (ou a evolução soberba, ou salve-se quem puder). Qualquer coisa que tire da contramão de ser humano. Ou sucumbir a contramão. A dor anestesiada de ser levado, a dor inevitável de ir de encontro. Dizem os boatos que é apenas uma questão de percepção…

Muitas resistências morrem, frequentemente destrambelhadas, querem se afirmar em violações, contradizem suas próprias convicções, aprisionados pela consciência ou pela falta dela, quando são obrigadas a se encarar percebem que na ânsia de se preservar se perderam – engolidos por grades ou paranoia. Outras se debatem para progredir, quem sabe a sorte de ser apenas um “esquisito” suportável (com mais sorte ainda: necessário), apesar dos sorrisos sarcásticos e das repreensões. Nadar é preciso, não temos mais barcos solitários – navegar é impossível na contramão. Apreendem compreensão, sabem a perturbação que pode despertar esse ser suspiro ou grito – Uivo. Lembram aos outros, confortavelmente esquecidos, dos suspiros e brados que em coma ainda sobrevivem em algum lugar da existência pálida.

Aceitar as próprias cores não é sem dor – elas vêm dos cortes, dos choque e empurrões, dos esfolamentos, das rasteiras, quedas e golpes, tanto quanto vêm dos banhos de chuva, das visões e paisagens, dos abraços apertados, dos diálogos, dos sorrisos, gargalhadas e toques. Não há que se julgar quem as negue, e os que preferem negar, não deveriam também julgar quem se colore. Alguns tecidos foram feitos para cor, enquanto outros são impermeáveis e inaderentes. Somos tecido, de pele e acontecimentos, e cada qual carrega a tessitura das linhas que lhe comporam – e lhe compõem. Alguns são acordes, outros silêncio. Mas não somos assim, tão passado. Não fomos nascidos, somos criados. Um pouco de tolerância.

Para não se aniquilar – dar espaço a um suspiro, para voltar a respirar. Porque o tempo não espera, porque a vida não para, porque ninguém se importa, porque o mundo gira, a lua continua a viver suas fazes, os desastres naturais continuam a acontecer, os humanos nunca cessam – gente nasce, gente vive, gente morre. Um espaço para suspirar, porque respirar é ambicioso de mais, exige tempo, exige ar – o oxigênio está em extinção. Para respirar é preciso pedir licença, mas nem todos têm plano de saúde ou dinheiro para consulta – os diagnósticos são suspeitos, mas quem se importa? Desde que ateste. Licença… Suspirar discretamente, quase em silêncio, até que possa pagar as contas ou pedir conta… porque a vida não espera, ninguém para, o mundo não se importa, o tempo gira, a lua não cessa de acontecer, os humanos continuam a viver suas fazes, os desastres: naturais – gente nasce, gente vive, gente morre. Por cada um, um suspiro.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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