Imagem de capa: Ditty_about_summer/shutterstock
Os jovens costumam se referir aos velhos como os contadores de histórias. Eles, os jovens, têm razão. A maioria de nós – passadinhos dos 60 – não perdemos a oportunidade de aproveitar o presente para assaltar o baú de lembranças. Muitas vezes não vem só uma história, mas um cardume delas.
Aconteceu comigo, mês passado, ao cruzar a Ipiranga com a São Luís. Estava na companhia adorável do meu sobrinho Caio. Ele que está com seus trinta e poucos tem mais familiaridade com a Avenida Paulista e suas cercanias.
Foi uma festa mostrar o Edifício Itália, o Copam, a Escola Caetano de Campos, inaugurada em 1894 (hoje sede da Secretaria de Estado da Educação). Mais do que mostrar foi bom contar. Não tudo. Uma coisa ou outra. Por exemplo, eu fugindo da cavalaria da PM em 1977. Era uma passeata de estudantes.
Lembro que morrendo de medo busquei me esconder nos corredores do Copam. Também narrei para o meu sobrinho a noite em que jovens feministas, eu entre elas, subimos no restaurante do Terraço Itália e tentamos consumir sem pagar a conta. Conseguiram?, ele perguntou. Pois é, não lembro mais.
Essa é outra coisa que acontece. Lembrar a história por partes: ora o começo, ora o meio. Nem sempre o fim. No caso do Terraço Itália a aventura foi entrar em grupo, com cartazes escritos Tomemos a Noite. Foi a intenção e não o resultado da história o que teve relevância.
Penso que o cérebro, com o passar de tanto tempo, vai selecionando: Isso fica, isso sai. Isso eu guardo, aquilo eu jogo fora. Pois da mesma maneira que o fígado não aguenta o álcool de toda uma vida, o cérebro não comporta galões e galões cheios de memórias.
Talvez essa seleção explique porque duas pessoas trazem memórias diferentes de um mesmo evento. Outro dia eu e meu irmão, Júlio, ao recordamos do enterro da nossa avó Affonsina há 46 anos, quase nos altercamos por discordamos de alguns detalhes. Foi assim, eu dizia. De jeito nenhum, ele retrucava. Qual memória estará certa? As duas. Ou, quem sabe, nenhuma.
Arapucas. Quanto mais antiga a lembrança, mais fluida. Mas há memórias gravadas a fogo. Toda vez que eu vejo um vídeo ou foto do Museu de Arte Contemporânea de Niterói – o MAC – volto a 1970. Onde está o museu – que Oscar Niemeyer imaginou uma flor, mas o povo vê um disco voador – havia um terreno baldio. Terreno alto dando para uma paisagem de deslumbre.
O mirante da Boa Viagem era frequentado, à noite, por casais de namorados que encostavam os carros na beiradinha do precipício. Eles se pegavam, se beijavam tendo a Baía de Guanabara como cenário.
Durante os finais de semana, de dia, famílias também iam espiar a Praia das Flechas aos pés. Ao longe o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor.
Nessa época, eu morava com meus pais e irmãos em Niterói, na rua Joaquim Távora, em Icaraí. O edifício chamava-se Moema. Dele guardo memórias boas. A padaria em frente que vendia o mais gostoso Mil Folhas do planeta. O começo da minha biblioteca com a coleção Imortais da Literatura Universal, da Abril. O prédio inteiro sacudindo com a acachapante campanha do Brasil na Copa de 70.
Também guardo uma memória de choque. Na escadaria de entrada do Moema, uma vizinha com o rosto desfigurado pela dor. Era uma manhã de domingo ensolarado. O marido, a mãe e um dos filhos da vizinha foram dar uma volta no Mirante da Boa Viagem. Sabe-se lá o porquê, o carro em que estavam mergulhou no precipício. Todos morreram.
Então toda vez que alguém menciona o MAC de Niterói, conto a história trágica da vizinha do Edifício Moema. É inevitável. Suspeito que se o ouvinte é jovem – não faz ideia do terreno antes do museu – deve comentar com seus botões: Esta senhora é uma inventora de histórias.
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