Eu gosto que você continue sonhando, mesmo que seja com impossíveis miúdas.
– Estou sonhando em justa causa, Doutor. Porque eu, se não fosse o amor, ou melhor, se não fosse a espera do amor…
Joelhos juntos, vai olhando os pés como se contemplasse a linha do horizonte. Saudade do tempo em que tinha saúde para desprezar o próprio corpo. Agora pouca convicção lhe resta, mesmo quando se lamenta:
– Sonhar me deixa muito cansado. Dá um trabalhão danado, sonhar.
– Se o senhor não sonhasse, já teria arrumado as ferramentas na caixa.
As ferramentas estão espalhadas pelo soalho. Ele recusa arrumá-las na devida caixa.
– Fazem-me companhia -justifica assim a desordem. Dona Munda tem outra explicação para aquele caos: o marido ainda acredita poder ser chamado de emergência.
– Cure-me de sonhar, Doutor.
– Sonhar é uma cura.
– Um sonhadeiro anda por aí, por lonjuras e aventuras, sei lá fazendo o quê e com quem… Não haverá um remédio que me anule o sonho?
O médico ri-se, sacudindo a cabeça. Retira da sacola o estetoscópio, mas o doente, mal pressente a intenção, ergue-se, esquivo. Sidónio deixa escapar o aparelho que tomba entre chaves de fenda, alicates e apetrechos do ex-mecânico. Bartolomeu espreita de lado, com desconfiança de bicho:
– Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é o contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos.
Mia Couto em Venenos de Deus, remédios do Diabo
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