Uma coisa é certa, essa dor vai passar

Imagem de capa:  Antonio Guillem/shutterstock

O amor, esse sentimento tão cantado em verso e prosa, tem um lado cruel. Um só não. Tem muitos lados cruéis. Tem vertentes variadas que nem sempre simbolizam alegria e paz. De vez em quando, o amor envereda por uns caminhos sombrios que não dão refresco e nem tranquilidade a quem dele se apropria.

O amor só é amigável quando nos encontra na adolescência, na juventude, na fase em que namorar, beijar, ficar, transar, é permitido por força do estado civil. Depois que mudamos o estado civil é proibido amar outro ser que não aquele com o qual nos casamos.

O problema é que “o proibido” nunca conseguiu impedir ninguém de se apaixonar mais de uma vez na vida. Pelo contrário, “o proibido” parece contribuir para aumentar a natureza desse amor. E é ai que o amor judia e mostra o seu lado cruel. Não por culpa dele, mas por culpa da sociedade.

A mesma sociedade que enaltece o amor, e reconhece as suas características indomáveis e voluntariosas, os seus imperativos de urgência idílica, se volta contra dois apaixonados que não se enquadram na lei sob a égide do estado civil solteiro. Se um dos dois for casado, perde o direito de amar.

Uma impossibilidade dessa anula toda a poesia e não tem Vinicius de Morais que possa modificar a avaliação do senso comum. Todo mundo repele o amor que surge na curva da estrada de Santos, depois do tempo regulamentar.

A mesma humanidade que reconhece a força do amor, pensa poder conte-lo usando regras do estatuto civil, através de parágrafos e artigos que, na prática, não funcionam de jeito nenhum. Quem ama, ama, e que se danem as convenções.

Podem impedir a materialização do amor, a vivência plena, o direito de experiência-lo, mas não podem impedir que ele exista de fato. Ama-se com todas as forças do corpo o amor permitido, e ama-se com todas as forças do corpo e da alma o amor não permitido. Ou seja: ama-se mais insanamente quanto menos lícito for o amor.

O amor é livre, e essa liberdade faz dele um sentimento que não aceita cabresto, e que mesmo sufocado recrudesce em lágrimas sobre o travesseiro, em suspiros profundos, em ausências no meio da multidão, em greves de fome por absoluta falta de apetite, em crises de ansiedade, em crises de depressão, em desinteresse pela vida, em dores profundas que acabam minando a saúde física e mental dos apaixonados.

Aqui e ali escuto as mesmas histórias de pessoas que amam sem ter o direito de amar o ser amado. São pessoas que passam por esse estranho calvário de desejar ardentemente viver, – mas só podem morrer e aceitar passivamente que a morte chegue antecipadamente todos os dias. De tanto que dói.

Elas dizem: “eu quero esquecer, mas não consigo.”

Eu acredito. Ninguém deseja passar por um sofrimento dessa envergadura. Acordar pensando e deitar pensando, sem o benefício do esquecimento. Viver entre a alegria e a tristeza, oscilar como pêndulo entre o amor real e o imaginário sem a possibilidade de experimentar a sua realização, sentir como se estivesse com ele, estando sempre longe dele, alternando momentos de alegria e de culpa extremamente solitárias. Isso é para os fortes! Os fracos adoecem, murcham e morrem.

Mas o amor não se importa com o preço, ele não é bonzinho a ponto de recuar diante de um obstáculo. Ele não diz: “ok, se a sociedade não permite, eu vou embora. Fica bem, fica tranquila, sou generoso, estou caindo fora.”

Nada disso! Ele fica, bate, insiste, persiste, e detona com qualquer possibilidade de vida acostumada. O amor impossível é um tirano com chicote, sem nada do sedutor que aparece no livro “ Cinquenta tons de cinza.”

E o mais grave é que ninguém pode parar a vida e os encargos para sofrer por esse tipo de amor. Nessa altura, as pessoas têm responsabilidade com filhos, com marido, com esposa, com família, com trabalho, com igreja, com a sociedade de maneira geral.

As pessoas sofrem por dentro, enquanto prosseguem por fora no mesmo ativismo desenfreado de sempre. Só param quando adoecem. São encaminhadas para os consultórios médicos e eles lhes receitam medicamentos antidepressivos, ansiolíticos e outras drogas similares, mas nenhuma dessas drogas poderá preencher a falta que “aquele” amor lhe faz.

Não há formula para resolver essa equação. Ela envolve muitas variáveis e nunca se renuncia ao amor simplesmente porque a sociedade fez constar a indissolubilidade do casamento, que aliás, já não é mais indissolúvel. O divórcio já é um direito de todos.

Outros derivativos têm força maior: a amizade com o parceiro(a), os filhos, a família, os julgamentos, a estabilidade financeira, e uma série de elementos racionais que sinalizam o perigo de se jogar uma vida comum no ralo.

Amar é sempre um perigo. Quando se ama corre-se o perigo de deixar de amar ou o perigo de deixar de ser amado. Quando se ama, corre-se o risco de perder. Quando se ama, corre-se o risco de ver o amor transformado na mais pura e perfeita amizade. Quando se ama corre-se o risco de se dissolver no meio de uma relação que começa linda, mas que em algum momento perde força para as eventualidades, para a rotina, para o descuido, para o desencanto.

Uma coisa é certa: “vai passar.” Tudo passa. Se o auge do amor vivido em plenitude passa, o auge do amor impossível também passa.

Um dia, veremos o outro fora da tempestade dos nossos sentimentos, fora da melhor forma, e a passagem inexorável do tempo destruirá boa parte das nossas falsas projeções idílicas.

Um dia, o objeto do amor será um velhinho, ou uma velhinha, sem bunda e com pouco cabelo, pouca musculatura, e pouca beleza, e ainda assim você poderá amá-lo. O amor verdadeiro tem dessas coisas.

Mas, nesse dia, o seu amor não doerá mais. Sabe por quê? Porque será um amor que desistiu da posse. É a posse que judia. Nesse dia, bastará a você fechar os olhos e saber que, em algum lugar, ele ainda existe, vive, respira, se lembra. Não é mais seu e de mais ninguém. Já ganhou a isenção de que são feitas as almas que aguardam o desencarne. É quase espírito. Livre. Ambos são.

O bom do amor é que os seres amados envelhecem e morrem. Tudo passa. Tudo o que nos faz felizes passa. Tudo o que nos faz sofrer também passa.

A necessidade de posse que hoje nos parece tragicamente tão necessária quanto impossível, será parte de uma impossibilidade maior e cósmica: ninguém é de ninguém. Somos eternos. E todo ser eterno não tem certificado de possessão aqui na terra, pertence a Deus, volta para Deus.

Deus, o nosso Amor Maior. Esse nunca nos será tomado.

Ana Maria Ribas Bernardelli

Estudante de humanas-idades, cidadã do céu e da terra, escritora por compulsão, leitora de letras, de pontos, de reticências, e de linhas, interventora de paisagens, solitária por opção, gregária por necessidade, gosto de músicas, filmes em que só as pessoas acontecem, documentários, biografias, e todas as obras de Clarice Lispector e de Watchman Nee. Vivo a espiritualidade, sem religião. Não tenho afinidades com rituais e com scripts que se repetem. Amo a liberdade, os animais, as plantas, os velhos, as crianças, e todos os seres que se sentem estranhos no ninho. Fujo de superficialidaes, e não tolero nenhum tipo de injustiça, crueldade, ou tirania. Adoro a Deus e a ele quero servir. Escrevo para organizar a vida, para aguentar o tranco, e em cada texto meu, você me encontrará. Espero que eu também lhe encontre no meu email, no meu site, e nos meus endereços nas redes sociais. Feliz por estar com vocês!

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