Por Tatiana Nicz
Esses dias assisti o filme Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância), entre algumas boas pinceladas (e outras nem tanto) essa frase do título ganha destaque. Ela aparece algumas vezes no filme, no espelho do camarim do protagonista. A outra coisa que da para guardar do filme é a intensa guerra de egos dos personagens. O filme é uma crítica à maneira como damos importância à coisas que (ao meu ver) não são essenciais, a fama de muitas pessoas que fazem sucesso por fatores alheios como personalidade, caráter, talento, criatividade. Isso tudo não é novidade, mas não porque um assunto tornou-se “batido” é que não precisamos mais refletor sobre ele.
Uma amiga me jogou como tema de reflexão e perguntou se eu não queria escrever sobre a arrogância, depois que ela falou um pouco sobre o que pensava entendi que a arrogância que ela se referia mistura-se ao ego, mistura-se também ao orgulho. Nós crescemos acreditando em tudo que nos contam, porque a criança acredita em tudo mesmo. Ela não conhece muito bem a mentira, nem arrogância, nem o que é ego. Enquanto crescemos somos preenchidos de verdades que nossos pais, professores e a sociedade nos ensina, construímos crenças em cima de crenças até que à elas nos apegamos como verdades absolutas. Porque se é algo em que todos acreditam então só pode ser verdade. Ninguém é incentivado a pensar diferente ou a mudar de ideia e nada é feito para mudar, não é digno mudar de opinião.
O problema é que nesse castelo de crenças e verdades absolutas existe muita manipulação, orgulho e jogo de ego. Em um curso que fiz uma das mediadoras disse que todo ser humano precisa e quer reconhecimento, quando ela disse me pareceu tão superficial, eu argumentei dizendo que não devemos buscar reconhecimento de ninguém, devemos acreditar em nós mesmos, ela disse: “é certo que não, mas na prática todo mundo precisa e quer reconhecimento e não tem nada de errado com isso”.
Como hoje em dia tenho tentado refletir sobre tudo que vem de encontro ao que eu acredito, me permiti refletir também sobre aquilo. Realmente queremos reconhecimento, realmente não tem nada de errado que as pessoas reconheçam a importância que temos em suas vidas e de nossos feitos. O problema é que como quase tudo na história da humanidade, exageramos. Aprendemos a dar muita importância ao que vem de fora e nos esquecemos de fortalecer o que vem de dentro, acreditar no que faz sentido para nós, independente do que o outro diz. E como somos muitos, todos buscando reconhecimento; e talvez por achar que somos o centro de nosso universo e devemos ser tão importantes ao olhar do outro, quando isso não acontece, geramos desconexões, ficamos ressentidos, cobramos, brigamos e nos decepcionamos.
O problema de nos apegarmos à verdades absolutas é que nada no mundo é definitivo. Toda crença é relativa, um reflexo daquilo que existe em cada ser, que é único. Então toda verdade é relativa, como no título desse texto, o que eu digo e penso de algo não significa exatamente o que esse algo realmente é. Vivenciando o ciclo da doença grave de duas pessoas tão importantes na minha vida (meus pais), vivi um processo onde todas as minhas verdades foram desconstruídas, nada mais do que eu acreditava me servia ou fazia sentido. Foram mudanças tão rápidas e intensas que, como um furacão quando passa e não deixa nada em pé, sobrou muito pouco de tudo aquilo que levei anos para construir. Esse processo desconstrutivo levou dez anos de profissão, amigos de data, parentes, estilo de vida, livros, roupas e muitas, mas muitas crenças. E as coisas foram mudando tão rapidamente que eu acreditava em algo em um dia, no dia seguinte absorvia outra reflexão que me fazia mudar de opinião.
E eu que sempre fui diferente senti que quanto mais eu me desfazia de tudo que construí e de tantas crenças engessadas mais eu me distanciava da maioria. Mas se é certo que nossas convicções nos tornam ignorantes, hoje fico feliz por não ter mais certeza de nada, mesmo que isso me custe algo ou amigos. Mas como nem tudo é bônus, um dia disse para minha terapeuta que estava me sentindo solitária. Ela respondeu dizendo que solitária eu sempre estive, apenas não havia me dado conta e talvez hoje mesmo com poucos ao meu redor eu nunca tenha estado tão plena.
E no fundo nós precisamos acreditar que temos as respostas para nossos maiores questionamentos dentro da gente, basta parar para escutá-las e ter coragem de confiar. A minha profissão se foi porque não fazia sentido que eu quisesse ajudar comunidades locais da tela do meu computador. Primeiro porque ninguém pediu minha ajuda e eu nem sabia se é isso que eles queriam. Segundo porque eu chegava em tais comunidades “carentes” e via crianças correndo soltas e felizes pela natureza e muita cooperação entre os moradores e família que viviam há séculos no mesmo lugar.
Certa vez fiz uma viagem de 14 dias levando doações para algumas dessas comunidades pelo litoral norte do Paraná, elas careciam sim de roupas, higiene básica e alimentos, mas elas tinham riquezas que eu não podia mensurar. Todas as noites nós cozinhávamos na fogueira ou no fogão a lenha e a noite sentávamos em volta da fogueira para contar histórias. Dependíamos da maré e da lua para seguir jornada, dependíamos da luz do sol para nos guiar e não usávamos dinheiro, nossa moeda era a troca. Com tanta vivência ficou difícil entender como eu havia ido parar ali no papel de “heroína”.
A alegria que vi por lá eu via em poucos na minha própria comunidade. Mas eu cresci acreditando que precisava ajudar aos mais “necessitados” e eu me sentia bem com isso. A caridade é algo a se pensar, ela deve ser feita sim, mas temos que ter muito cuidado em seguir seus princípios básicos. Esses dias li uma frase dizendo algo parecido com: “quando fizer caridade não conte para ninguém para não humilhar quem recebeu”. A verdade é que quem mais se beneficiava desse posto de “empresária do bem” era meu ego, me sentia importante, fazendo algo para quem “precisava” e ganhando dinheiro com isso, porque o jargão “ecoturismo” é moda da contra-cultura e vende.
Eu tinha status e muito prestígio, enchia a boca para dizer coisas como “sou diretora” ou “minha empresa”, fui convidada para participar de palestras, sai no jornal, frequentei congressos, reuniões e rodas de discussões com pessoas comunicando-se através de seus notebooks e que provavelmente nunca passaram um dia sequer sem alimento na mesa discutindo como trazer desenvolvimento econômico para as comunidades locais. Hoje tenho até vergonha de pensar no quanto realmente acreditei em tudo isso. Toda essa crença foi perdendo força quando fiz meu mestrado na Holanda. Eu não consigo nem elaborar sobre o que penso da academia, porque é profundo e coloca muita coisa em xeque. Mas posso falar um pouco da área que estudei por ser algo que eu vivi. O turismo é novo setor para a academia, nele prevalecem homens caucasianos, com mais de 50 anos provenientes de países “desenvolvidos”. Eles dissertam sobre protocolos e “blueprints” para trazer desenvolvimento para comunidades locais de países de terceiro mundo onde quem mais sofre são as minorias, só que dentre muitos outros “poréms”, eles não fazem parte dessa minoria.
E muitos compram suas ideias e são publicados artigos e livros, replicados em teses e teses (que quase nunca são lidas por ninguém), é tanto apego a tantas verdades absolutas que recebem aval de tanta gente, e se todo mundo está acreditando junto, então é certo. Nesse contexto os doutores da razão são aclamados. Também vivemos em um mundo onde juiz é Deus porque estudou muito e do alto de sua toga julga “certos” e “errados ” baseado em legislações repletas de brechas que beneficiam poucos. E se engana quem pensa que estou me referindo apenas ao nosso país.
Pensei nisso agora pouco, quando cheguei ao hospital para ficar com meu pai que está em recuperação de uma cirurgia difícil, ele foi mudado de quarto e ninguém me avisou, quando cheguei no seu quarto vazio, me bateu um desespero tão grande que fui correndo perguntar na enfermagem e escutei da jovem bem apessoada do outro lado do balcão: “não sei porque sou médica!”. Então pensei no doutor do doutorado e no juíz das leis, porque acho que médico deve ser uma espécie de ambos, é chamado de doutor e luta para vencer as barreiras e leis que permeiam a vida e a morte a todo e qualquer custo. Pensei também no que me amiga disse sobre o reconhecimento, sim nesse momento queria reconhecimento e respeito pela minha dor, mas a palavra “médica” saiu como se fora soberana: “não me incomode porque sou soberana” foi assim que eu ouvi. Sim, a medicina é um caso a parte e confesso que não sou muito fervorosa em sua defesa (pelo menos não como é manipulada hoje), pois minha experiência com médicos nesses últimos anos não tem sido das mais agradáveis.
Sim existem médicos bons e juízes bons. Meu primo médico diz que talvez eu esteja mesmo cansada do ser humano em geral. Pode ser que ele esteja certo, mas como acredito que somos todos iguais, para médicos e juízes como para todos os seres, desejo um mundo onde todos se permitam desapegar de verdades e mudar de ideia, como disse certa vez um sábio Raul, um mundo em que sejamos metamorfoses ambulantes, pois assim como a borboleta, só aprende a voar aquele que se permite passar por grandes metamorfoses. E para isso precisamos ter coragem de mudar de ideia, admitir erros, trocar a direção. Desejo então desconstruções profundas e esvaziamentos, pois nada de novo pode entrar ou mudar corações já preenchidos com tanta arrogância, orgulho e verdades absolutas. E espero que esse texto chegue logo no coração de quem mereça, porque amanhã já pode ser que eu tenha mudado de opinião.
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