Um texto sobre a gratidão – Reclame menos e agradeça mais!
Mohammed é médico e vem do Sudão, um país rico de matéria-prima, mas pobre de democracia, paz e justiça social. O país está em guerra e entregue aos interesses de grupos egoístas e criminosos.
Ele estudou e medicou por lá, mas se meteu em política, criticou gente que não valia nada, mas que era poderosa, e teve que fugir para salvar a própria pele. Foi assim que veio parar na Alemanha, onde pediu asilo político, e hoje trabalha em um hospital de Berlim.
Encontrar-me com ele e escutar suas histórias me fascina, pois fico sabendo mais sobre um país e um povo que eu, até pouco tempo atrás, só conhecia da televisão e de algumas leituras esporádicas.
Certa vez, ele pediu para ver fotos de Salvador e, já na primeira foto, que mostrava a praia do Porto da Barra, tirada do Farol, olhou sério e suspirou. Depois disse “Quanta água! E tudo verde!”, apontou para a areia da praia e completou: “Em minha terra, é tudo assim!”.
É interessante ver diferenças, mas também semelhanças, é enriquecedor mergulhar numa cultura tão rica e é triste constatar que também por lá a realidade não anda nada boa.
Foi num dia desses que ele me contou o caso da colher de arroz, a história de dois irmãos lá no Sudão, que brigaram na hora do almoço, já que a comida era pouca e um deles achou que o outro tinha comido uma colher de arroz a mais do que ele. A briga esquentou, ficou bem séria e, no final, um irmão matou o outro. „O cara matou o irmão por causa de uma colher de arroz“, disse ele, com uma expressão triste e reflexiva no rosto.
Recordei-me disso hoje porque estava cozinhando arroz. Quando ficou pronto, passei o arroz para uma tigela e não notei que havia ficado um pouco dentro da panela.
Depois, limpando a cozinha, quis lavar a panela, vi o resto de arroz e pensei se deveria aproveitá-lo ou jogá-lo fora, já que não era muito, somente uma colher, não mais. Foi aí que parei e até me assustei pela minha falta de respeito por aquela comida, que, mesmo pouca, faz falta a muita gente faminta por aí.
Enquanto nós, que temos em abundância ou pelo menos o suficiente, desprezamos restos e desmerecemos alimentos por serem poucos ou baratos, muita gente daria a vida para comer aquilo e não morrer de fome.
Um prato de arroz, o que é um prato de arroz? Para muitos de nós, não é nada, tem até gente que acha que é comida de pobre. Mas para muita gente seria um manjar dos deuses.
Acho que temos o defeito de sermos gratos somente no momento da falta. Na verdade, nem somos, somente seríamos se recebêssemos o que precisamos ou desejamos. „Eu seria grato se tivesse algo para comer!“, pensa alguém que sente fome, mas que se esquece então de agradecer, assim que a barriga está cheia. E quando a barriga anda cheia todos os dias então, aí é que o prato farto vira rotina e ninguém se lembra mais de agradecer.
Parece-me que temos mais a tendência de reclamar do que falta ou incomoda. Não valorizamos muito o que temos e nos faz bem. Reduzimos assim a vida a tão pouco que fechamos os olhos para as tantas coisas boas que recebemos dela o tempo todo. Ou você nunca observou que tem bem mais gente que reclama de ter que acordar cedo do que gente que agradece por ter acordado?
Mas que não me entendam mal: reclamar pode! Reclamar é normal. Todo mundo reclama quando está insatisfeito, mesmo que reclame calado, engolindo a reclamação. Mas basta reclamar e pronto. Não precisa ficar remoendo nada. É melhor reclamar com moderação e investir a energia economizada em mais gratidão pelas coisas positivas que lhe cercam, por mais insignificantes que possam parecer. Ou seja: reclame menos e agradeça mais.
Enxergar o lado bom da vida e as tantas coisas preciosas que ela nos traz e ser grato por isso nos ajuda a valorizar o que temos e o que recebemos, inclusive nossas relações, o que faz com terminemos valorizando a própria vida e assim a nós mesmos.
Ajuda-me perceber que tive sorte, na verdade, muita sorte, pois, apesar dos problemas que já tive ou tenho em minha vida, alguns até bem sérios, a coisa poderia ter sido ou ser bem pior, bastando que a cegonha (talvez cansada ou embriagada) tivesse errado o caminho e me largado em outro lugar, em outra família, em outro país, na pior das hipóteses, no meio do deserto, de uma guerra ou no pé de um vulcão pouco antes de uma erupção.
Depois que me lembrei de Mohammed e da história que me contou, peguei uma colher e raspei o arroz do fundo da panela. Comi aquele resto, terminei de limpar a cozinha, peguei o cachorro e fui passear com muito respeito por aquela comida que agora explorava minha barriga e com a gratidão de quem pode comer arroz sempre que tem vontade.
Imagem de capa: Suzanne Tucker/shutterstock
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