Para meu cãozinho Bruce que faleceu no último domingo, para mim mesma que luto para não me entregar aos fins definitivos e a perda do encanto, por mais um passo que nos leve além do que somos hoje.
A vila onde eu nasci fica às margens de um monte e a beira de um rio. Pessoas, cidade e natureza coexistem enquanto desenham a paisagem mais linda. Há beleza e a água está perto de todos. Desce dos montes e desenha suaves caminhos, mata a sede daqueles que passam, acaricia a pele dos que ficam, oferece higiene, repouso e paz. Quando passa, leva consigo aquilo que sobra. Arrasta a energia ruim daqueles que acreditam em seu poder de purificação, carrega oferendas, nutre almas e lavouras.
Certo dia, na vila onde eu nasci, houve uma grande enchente. Algo brutal e que nunca tinha acontecido desceu pelos anteriores caminhos calmos e amigos. Casas foram destruídas. Algumas pessoas morreram, muitas ficaram desalojadas.
Poucos minutos e tudo passou a ser diferente. O equilíbrio foi quebrado e o que era esperado pela constância do tempo, deixou de ser real. A estabilidade daquele local desta vez perdeu sua histórica morada, transformou-se em parte da água e dessa vez partiu arrastada e sem opção de ficar.
O desequilíbrio, porém, não apagou a história pregressa. O rio caudaloso e revolto de agora não destruíu as memórias daqueles que ficaram. Os benefícios e as alegrias de outrora não deixaram de ser verdade quando o cenário mudou. Há nessa história, é muito importante ressaltar, um antes e um depois. E, logo mais, um futuro onde tudo será diferente.
Se a natureza pode nos invadir com aparentes desequilíbrios e tudo mudar, sabemos que poucas também são as pessoas que lidam bem com suas próprias inconstâncias. Coisas acontecem, estabilizam-se por um determinado tempo e, num belo ou triste dia, tudo acaba e a vida muda.
Quem não gostaria de viver um amor eterno, permanecer jovem e encantado com o futuro, manter ao lado, para sempre, os pais, os filhos ou até mesmo o animalzinho de estimação mais amado? Entretanto, os relacionamentos acabam, as pessoas partem, trocamos de emprego, de cidade, nossos bichinhos morrem. As mudanças de nossas vidas podem chegar como as corredeiras caudalosas que tudo arrastam, que nos tiram do eixo, que destroem nossas casas, nos desabrigam e partem nosso coração enquanto nos fazem entender que não somos mais quem pensávamos ser.
Já não somos tão jovens para começar de novo ou, independente da idade, tememos a repetição das mudanças que nos dilaceraram do nada, em um dia.
E aí não arriscamos um novo emprego…
E aí não nos armamos e nem nos apaixonamos mais…
E aí não queremos mais mudar, não queremos mais sonhar, não queremos um novo animal- nem que seja pelo infinito amor que ele pode nos conceder.
A resposta para esse impasse, que nos choca em sua realidade, está na compreensão de que existem muitas vidas dentro de uma mesma vida, que somos cíclicos e que o presente não apaga tudo de bom que já aconteceu conosco no passado.
É preciso entender que se moramos muitos anos numa vida sem enchentes aquilo significou muito sim, e se tivemos um casamento feliz por alguns anos, isso não pode ser invalidado pelo fim. E se hoje a vida nos ensinou que a nossa casa não deve estar mais tão perto de um rio, que possamos entender que isso não faz do rio o nosso inimigo. Que possamos ter a maturidade de acreditar num novo amor, pois ele chegará quando nos permitirmos ser novamente amados.
Que possamos acreditar em um novo começo, pois ele estará sempre um passo além de onde estamos hoje.
Que não nos esqueçamos que a felicidade pode ser breve e efemera, mas pode morar logo ali, do outro lado da calçada ou mesmo se materializar na concretude de um animal que nos aguarda no fim do dia.
Sim, nunca é tarde para mudar. Sim, sempre poderemos a amar e sermos amados novamente.
Afinal, “uma vida é cheia de outras vidas”. E o fim nada mais é do que o começo de algo novo…
Imagem de capa: Kseniya Ivanova/shutterstock
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