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“Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante. Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros.” Nietzsche
Certa vez, na prática de Zazen (meditação sentada), escutávamos, lá fora, na praça, um jovem a tocar violão. Ele tocava alto, acompanhado pelo coro de outros jovens, enquanto eu tentava (em vão) me concentrar. Quanto mais tentava, mais me incomodava com a música alta. Minha atenção persistia no som que vinha lá de fora, meu incômodo também.
Ao final da prática, o monge usou a música externa como metáfora para a vida: o caos sempre existirá, mas, dentro de nós, podemos criar um reduto pacífico e tranquilo. “Existe ordem no caos”, disse ele. Eu duvidei. Naquele dia, deixei a meditação mais estressada do que chegara. Mas essa experiência serviu como reflexão, para que eu passasse a observar com mais cuidado meu movimento (e incômodo) diante do caos. É fato, a bagunça, o barulho e o caos me incomodam, muito.
De uns tempos para cá, tornei-me excessivamente preocupada em manter a ordem; dedico tempo e energia, para manter tudo em seu devido lugar. Começando pela parte mais fácil, mantenho a casa arrumada, deleto e-mails, organizo documentos e aplicativos em pastas, apago as fotos mal batidas, desfocadas, todos os meus históricos e minhas conversas no whatsapp, mantenho a louça e meu carro em ordem, fazendo limpas constantes nos armários, não deixando papéis e bugiganga acumularem.
Então, vem a parte mais complexa: passo conflitos, sentimentos e palavras a limpo, evito pessoas e pensamentos tóxicos, tenho aprendido a dizer não e, certamente, preciso do silêncio para meditar. Talvez essa obsessão me transmita uma falsa ilusão de que tenho controle sob algo. Ironicamente, desenvolvi esse comportamento justamente quando tudo ao meu redor parecia desmoronar.
Para a Gestalt-terapia, somos um organismo inteligente que se autorregula e se adapta diante dos diversos estímulos e demandas externas; manter a ordem em meio ao caos foi uma resposta que encontrei para sobreviver. Sinto que é hora de deixar o caos fluir dentro e fora de mim.
Naquilo que resisto, persisto.
Escutei essa frase na aula de formação em Gestalt-terapia. Naquele mesmo dia, havia tido um dia caótico, tentando fazer meus alunos de 10 anos trabalharem em silêncio; esforcei-me, em vão, para manter a ordem na sala. Quanto mais insistia no silêncio, mais barulho ouvia. “As aulas andam um tanto caóticas, acho que eles não estão prontos para a prova”, disse, em tom preocupado, à minha coordenadora. Na semana seguinte, apesar do caos, decidi manter a data da prova e ninguém tirou abaixo de 90.
O caos e a ordem.
“Tome uma atitude caórdica”, lia o pequeno papel que tirei certa vez em um grupo de apoio. Fui a um encontro e nunca mais voltei, mas não me esqueci dessa palavra.
Tantas vezes, nas aulas de formação em Gestalt-terapia, falamos sobre a importância de fundir polaridades, “é preciso aprender a trocar o OU pelo E”. “Uma pessoa pode estar feliz e triste ao mesmo tempo”, dizia nossa mestre, Yara. Ontem, um dos meus alunos referiu-se ao colega como “inteligentemente burro”. Antes de interferir, observei a reação do colega, que não se ofendeu; pelo contrário, achou graça e concordou. As crianças parecem entender esse conceito com mais facilidade.
E, enquanto eles faziam os exercícios, contavam suas histórias, conversavam alto, resolvi deixá-los trabalhar e não mais pedir silêncio; parece que eles se organizam assim. Aprendi, com eles, que caos é algo muito relativo e que ordem é um conceito um tanto utópico, ainda que necessário, é também um trabalho interno. Se não resistirmos, dá para aprender no caos, meditar com música alta e, dentro de nós, podemos construir, sim, um reduto de paz.
“Go as a river”, dizia um dos quadros de caligrafia impecável escritos pelo mestre zen-budista Thich Nhat Hahn, em sua comunidade na França. Todos os dias, eu meditava em frente àquele quadro, com esperança de absorver suas palavras. Vá como um rio. Os mais importantes aprendizados são tão simples de entender, ainda que difíceis de praticar.
Fato, quanto menos atenção colocamos em algo, menos aquilo nos incomodará. Não resista. Deixe fluir. Hoje, deixei a cama desarrumada e, quem sabe, possa aprender, por fim, que o caos contém muita ordem em si, basta validá-lo.