Por Nara Rúbia Ribeiro

Confesso que sempre que me deparo com qualquer obra nova do Mia eu me sinto um tanto conturbada. Ansiosa pela leitura, não raro a procrastino, ou começo a ler e não concluo de imediato, postergando, sempre. Desta vez não foi diferente. Recebi, há alguns dias, o livro “Vagas e Lumes”, de Mia Couto. Hoje, após concluir a leitura, devo dizer que o livro me surpreendeu.

Apesar de ter nascido em Moçambique, um dos países mais pobres do mundo, marcado por profundas desigualdades sociais e assolado, na segunda metade do século passado, por duas grandes guerras, Mia Couto sempre nos traz, na noite escura que permeia toda a sua obra, algum luzeiro de esperança. No livro “Vagas e lumes” esse luzeiro aparenta ter sido momentaneamente ofuscado na dor, na dúvida, na saudade.

O poeta que sempre celebrou o sua condição de ave “em alguma vida fui ave”, hoje, no poema “autobiografia”, prefere esconder suas asas que, talvez, sejam afrontosas aos circunstantes, posto que onde nasceu “há mais terra que céu./Tanto leito é uma bênção/para mortos e sonhadores”.

Mia Couto sofreu a perda do pai em janeiro de 2013 e, em setembro deste ano, sua mãe também veio a falecer. O livro, parece-me, então, uma catarse. Um grito dilacerado. O seu modo de despedir-se dos seus. Assim o faz em “O habitante”, poema dedicado ao seu pai, no qual descreve as sensações de que inexiste a morte e a ausência do ser amado. Dirigindo-se diretamente ao pai, afirma o poeta: “Moras dentro”. Afinal, “só morre quem nunca viveu” – assinala no poema “Incertidão de óbito”. Acena a saudade de sua mãe, homenageia Drummond, João Cabral de Mello e Neto, Manoel de Barros e também Carlos Cardoso, seu amigo.

Em “Vagas e lumes” o poeta continua a valer-se de metáforas muito suas. Sente-se árvore, no poema com o mesmo nome, assim como no poema Raiz.  Permanece pássaro, no poema “Gaiola”. É pedra no poema “Estátua”: “Da abandonada estátua/ partilho o mineral destino”.

Sua paixão pela água: rios, mares e lágrimas, encontra variados registros. Em “Exíguos Anseios”, o poeta balbucia: “Um redondo de lágrima me basta”.

O Tempo está sempre presente, mas o poeta sabe sondá-lo e diz, no poema “Idade”: “a idade que tenho/ só se mede por infinitos/ Pois eu não vivo por extenso”. Enquanto no poema “Errata”, Mia assegura: “Quem é mortal, mente”.

E Mia Couto, exímio contador de histórias, valeu-se dos poemas para contar algumas. Tal qual em “Guerra”, “O naufrágio”, “A vez e a voz”, “A bela e o espelho”, “A casa”, “A mulher insone” e “O homem que amava a estrada”.

A morte reina absoluta em “Vagas e lumes”. Nos primeiros 12 poemas do livro, só para termos uma noção da recorrência temática, tivemos mais de dez alusões diretas à morte. É uma  reflexão poética não sistematizada, caótica como a mente do poeta quando o coração sangra, sobre a vida, a morte que a integra e o pós-morte; a eternidade.

Assim como a morte é uma constante no livro, Deus também é. Esta última presença tão marcada me deixou de fato pensativa. A insistência em afirmar-se ateu, em demonstrar o seu descrédito na divindade, acaba por produzir um efeito invertido. Assim, do mesmo modo que seu pai é habitante da casa e habitante de seu íntimo sem que lá de fato o esteja, Deus também percorre todo o livro e o habita, sempre em letra minúscula: “deus”, mas onipresente.

No poema que dá nome ao livro, Mia Couto confessa:

“Há quem se deite

em fogo

para morrer.

Pois eu sou

Como o vagalume:

– só existo

quando me incendeio.”

Neste livro, embora se sinta vagalume, Mia me parece Fênix. Ave envergonhada de sua condição, ferida de morte na incandescência da vida, ardente em fogo, e em iminente ressurreição.

Nara Rúbia Ribeiro

Escritora, advogada e professora universitária.

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