Vamos todos ficar nus!

Percebe-se com o tempo que certas ideias e concepções de mundo são como tendências da moda. Elas vêm, pregam como carrapato, infestam todas as partes como uma peste, invadem a línguas e falas dos seguidores das tendências dos tempos. Pessoas se vestem com ideias como roupas da moda, e quando a moda passa, trocam de ideia com a mesma facilidade, deixando aquela peça superficialmente utilizada, antes esquecida no corpo, agora esquecida no guarda-roupa da vida. Tendências vem, tendências vão, se misturam, se invadem, se reconfiguram, ficam tempos a mais, ficam por alguns dias e minguam, se desgastam, se renovam, são idolatradas e depois esquecidas.

Não é que a mudança de ideia seja um problema, mas há algo de preocupante em tratá-las de uma forma tão rasa. É que as roupas nos vestem e tal, precisamos trocar o figurino para representar os nossos papéis cotidianos. Seguir correntes para se vestir não é exatamente algo que tenha um grande impacto no mundo, embora seja uma pena não usufruir da possibilidade de se expressar e de criar a partir do vestuário, combinando apenas propostas peças prontas preestabelecidas. Mas assim tratar as ideias e as concepções de mundo tem efeito pernicioso. Ideias não foram feitas para serem vestidas sem crítica ou aprofundamento na questão, não foram feitas para serem aceitas, impregnadas e viralizadas para depois se perderem no tempo.

Na verdade, ideias sequer foram feitas para serem vestidas, ideias não são como roupas. Elas exigem, para se realizarem, uma ação direta na nudez – esse estado puro e bruto que mostra o corpo como ele realmente é, como todas as suas belezas e imperfeições, com todas as suas formas únicas moldadas pela natureza dos encontros geradores de vida, com todas as linhas e marcas desenhadas pelo tempo e pela experiência, com todas as cores e detalhes que fazem de cada corpo único. Corpo completo do cabelo às unhas, sem remendos ou dissimulações, completo em sua própria natureza, a obra final de um trabalho contínuo do organismo em interação com o mundo.

Desse corpo nunca se livra: ele sempre estará lá, ele é o que é, e é ele que molda tudo o que a ele se destina. Ele é o que nenhum outro poderá ser. Só o tempo se mete com o corpo, e do exercício no tempo ele se modifica, das rebeldias estéticas que a ele se impõem ele escolhe o que lhe cairá bem, ou castiga a vontade que contra ele se impõe rebelando-se também. O corpo é o que revela a experiência das vivências as quais ele foi submetido. Assim, também a mente nu: a verdade da alma que erra pela vida. Essa tão íntima e escondida natureza do ser, sempre velada por um simulacro, por uma fantasia, por uma burca, uma túnica, por sedas, linhos ou panos de saco. Mas é a nudez que aprende, é a nudez que sente, é a nudez que vive e segue até os limites da vida. Só a nudez permite encontros com as ideias, encontros que marcam, encontros que transformam as formas, as cores, as texturas, os estigmas, a natureza do que é, e não uma vestimenta externa que já vem pronta e se coloca por um tempo ou para sempre até que estejamos adornados por trapos.

Dessa divagação fica o desafio, e do desafio fica o convite: experimente! Deixe os retalhos e as tendências lidarem com os guarda-roupas, mas no que diz respeito à mente: vamos todos ficar nus!

Almoço na Relva , 1863, Manet. Óleo sobre tela, 214 X 270 cm. Museu do Louvre, Paris, França.

 

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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