Por Patrícia Dantas
”Dá vontade mesmo!” – escutei tal frase tão enérgica e decidida que me ocorreu o pavor de topar com a minha prova maior de todos os dias: o esvaziamento de mim, recomeçar me criando, estilhaçar o ser velho e amorfo, fundir-me com o novo. Esse novo que despista os erros e enche nossos mundos interiores de boas promessas; não saber o que fazer da despretensiosa ideia de se esvaziar, colocar o eu à prova de balas de todos os calibres, o que é antes de tudo uma evasão de si sem consultas prévias.
Passei o restinho de dia que ainda havia trancada com tal frase pendurada nas mãos, sem bem saber o que fazer com uma confissão que não tinha sido endereçada a mim, era apenas uma declaração em uma hora propícia de uma amiga para a outra – que talvez fizesse pouco caso ou nem soubesse como seria difícil uma pessoa se esvaziar, como se desfazer de algo precioso que se guarda a vida inteira.
A verdade é que nos guardamos também uma vida toda, sem saber nunca o que fazer ou o medir acertadamente o nível do medo que precisamos domar para saltar do trampolim humano. Voamos sobre nossos pés, e não enxergamos nossas asas por medo de ver nossas criações fantasmagóricas de tão autênticas que são.
É uma vontade que ultrapassa e arrepia até o último fio de cabelo que repousa inerte no corpo fatigado e angustiado pelo iminente descortinamento do ser. Uma novela de personagens e universos fatídicos. Vivos. Vivíssimos dentro e fora do corpo, com angústias e alucinações verdadeiras e imorríveis. Que nome esse, que ecoa fundo, tilintando na liberdade sem fim: imorrível!
O que parte do meu desejo – essa espécie de vontade que nem possui nome próprio – ou não saberia ou teria palavras para nomeá-la de tão impalpável que é. É algo que me ultrapassa e me lança aos ares despovoados de um abismo que me atira e me levanta num voo possante. A começar pela mente que habita a alma e faz morada há tempos; depois, a leves passos, debandar o que existe em casa sem nenhum sentido.
É como se despir uma pessoa por inteira, assim também há a necessidade do desprendimento. O suspiro. O último ar disponível. Despertencer. Voar livre. De braços bem abertos para abraçar a polpa do mundo.
Onde buscar tanta graça? A graça da coisa como nos abriu os olhos a escritora Martha Medeiros. Tudo parece ter graça e sentido ao mesmo tempo, ao passo que se está distante e, ao chegar mais perto, vai se esvaindo como uma chama em prantos, para ser mais exata, como um rio caudaloso desabando sobre a gente. Com tanta força e poder que não vale questionar. Então, cadê a graça mais bendita de todas? Àquela que estremecemos a face, só de pensar? Talvez no tempo incontável e eterno haja o resíduo de toda a graça libertadora com ares de ser vivo, de realidades e abstrações sutis.
É nessa riqueza de detalhes – sem meias-palavras – a que somos submetidos que se consolam nossos dias, que almejam ser bem melhores e mais graciosos que o bendito cotidiano que vemos muitas vezes como um ato libertador.
E do total desprendimento que me cerca, do nome revelador que me ocorre e se mostra com tal facilidade e empatia é que sou quem sou; vou me tornando uma quase desconhecida audaciosa que busca conhecer cada vez mais a outra que mora bem ao lado. É minha metamorfose em ciclos.
Até agora, ainda não descobri um lugar adequado para guardar minhas vontades e descobertas sobre essa nova veste feminina e largada no mundo -fruto dessa transformação diária – sem destino e pretensões de se descobrir por completo numa só vida.
Muitas delas ainda virão – muitas de mim, melhor dizer! Não há tanta pressa frente ao tumulto desse despertar, porque há muito mais o sabor de se pertencer aos poucos e nem sempre saber sobre a total nudez que nos entrega.