A vida pode ser bela: sobre as comunidades quilombolas que ainda resistem ao tempo

Por Adriana Vitória

Os negros que fugiam da escravidão entre os séculos XVI e XIX formavam comunidades denominadas “Quilombos”, nelas podiam exercer livremente sua cultura e garantir a transmissão da mesma às próximas gerações.

O mais famoso deles foi o dos Palmares. Entretanto, apesar do enorme descaso dos governos a tudo que diz respeito a preservação da nossa história, ainda existem muitas comunidades quilombolas que resistem ao tempo.

Na região serrana de Petrópolis – RJ, a cerca de 14 km do centro de Itaipava, sobrevive um grupo de treze famílias de quilombolas na Tapera.

Tive a oportunidade de conhecer um desses descendentes de dezessete anos. Ele trabalha com manutenção de jardins depois que vai à escola. Como os ônibus municipais não chegam até lá, todos que pertencem a comunidade contam com uma pequena van cedida pela prefeitura que os leva e trás para área urbana. Como nem sempre seus horários coincidem, meu conhecido costuma caminhar, feliz, cerca de cinco quilometros até a chácara no Vale da Boa Esperança e, com sorte, às vezes tem carona de volta.

Um dia eu e minha família resolvemos visitá-lo.

Para chegar lá, passamos por uma estrada de asfalto por dentro de um condomínio de casas de veraneio, onde alguns deste quilombolas trabalham. Depois ainda fizemos mais três quilometros em estrada de terra para finalmente chegarmos.

Na tragédia recente das enchentes nesta região, a Tapera original foi levada pelas chuvas e todas as famílias, depois de perderem tudo, tiveram que ser  realocadas temporariamente em outro local até que, finalmente há um ano, puderam voltar a seu antigo lar com suas casas reconstruídas, em acabamento de PVC, pela prefeitura.

Quando chegamos, mal pude crer nos meus olhos. O lugar parecia saído de um livro. Shangrilá ! Todos vieram ver quem eram os estranhos, uma vez que não costumam receber visitantes.

Tudo tão limpo, organizado, lindas hortas e pessoas sorridentes.

Meu conhecido mal acreditava que estávamos ali e parecia tão espantado quanto nós.

Andamos um pouco enquanto ele nos contava algumas histórias do lugar.

Lá todos falam muito pouco e baixo. Quem fala alto por ali é a natureza exuberante e todos são bons ouvintes. São sobretudo observadores, com exceção da sua irmã que ficou muito curiosa ao ver o celular da minha filha, o que o deixou visivelmente incomodado, até ele pedir para que ela devolvesse dizendo: Para com isso ! É só um celular ! Nunca viu ? Devolva !

Tiramos fotos e, ingenuamente, perguntei a ele se gostaria de sair dali um dia, afinal de contas, ele passa as tardes convivendo com realidades opostas a sua, mas, ao invés de me responder, me questionou por que ele sairia, me dizendo que era muito feliz ali.

E me perguntei depois “Por que” ?

Alimentamos a crença de que necessitamos de tanto. Passamos a vida desperdiçando e esbanjando tempo, alimentos, coisas e a própria vida em busca de objetos e bens de consumo que nos preencham o vazio e nos tirem do nosso próprio abandono.

Distanciados da nossa origem, não chegamos a compreender o que para eles sempre foi óbvio. Nos tornamos insensíveis a tudo o que é natural, aos animais, as plantas, a vida e a morte. Ali, nada disso causa estranheza.

Criamos as chamadas “cidades” frias, cinzas, sem alma, fedidas e barulhentas que nos ferem, maltratam e até matam diariamente e aceitamos “isto” como natural.

Sapos, gambás e grilos, raros de se encontrar nesses “paraísos” de concreto, são vistos com horror, como se fossem alienígenas. Muitos de nós, nunca comemos almeirão, acelga ou taioba, mas passam a vida produzindo lixo e se envenenando com toneladas de comida industrializada dos supermercados.

A comida deles vem direto da terra e as plantas são, na maioria das vezes, seus remédios. Não se interessam em consumir bens, parecem preenchidos. Entendem que são parceiros da natureza e que estão aqui de passagem.

Não são ignorantes nem alienados. São sábios. Possuem algo que já perdemos, o contato com a divino, com a vida.

A luz só chegou há três anos, trazendo muito mais conforto ao dia a dia deles, mas ninguém lamenta a falta dela no passado.

A comunidade é organizada e tem um líder que esta sempre em busca de melhorias. Estão construindo um pequeno centro para a produção de artesanato, festas culturais, além da disponibilização de computadores a comunidade para acesso a internet.

Foi um dia maravilhoso que nos lembrou que a vida que conhecemos é pura ilusão.

Imagem da plantação da comunidade Quilombola da serra do Rio de Janeiro. Foto Miranda Ryan
Nota da Contioutra: A imagem de capa da matéria foi usada apenas para ilustrar o tema, não representando a comunidade da Serra do Rio de Janeiro: Fonte.
Adriana Vitoria

Mineira de alma e carioca de coração, a artista plástica, escritora e designer autodidata Adriana Vitória deixou Belo Horizonte com a família aos seis meses para morar no Rio de Janeiro. Se profissionalizou em canto, línguas e organização de eventos até que saiu pelo mundo sedenta por ampliar seus horizontes. Viveu na Inglaterra, França, Portugal, Itália e Estados Unidos. Cresceu em meio à natureza, nas montanhas de Minas, Teresópolis, Visconde de Mauá, e do próprio Rio. Protetora apaixonada da Mata Atlântica e das tribos ao redor do mundo, desde a infância, buscou formas de cuidar e falar deste frágil ambiente e dos seres únicos que nele vivem.

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