Quanto mais a gente vive, mais saudade a gente tem. O tempo passa e a memória se esparrama, se ajeita como pode aqui dentro. Vão-se os dias e as saudades ficam. E é saudade de tanta coisa! Do que já foi, de quem já foi e do que a gente vai deixando de ser.
Crescer talvez seja isso mesmo. Ora essa arte de deixar de ser uma coisa, ora o exercício de se tornar outra. Mas sempre, num caso e no outro, esse trabalho simples de tomar distância e aprender a ver de longe o que ficou lá atrás. Esse ofício de construir lembranças e o encargo de ampliar nosso mundo interior onde guardá-las. Essa tarefa sublime de reconhecer um canto de onde partir e para onde voltar. Esse empenho sem fim de lembrar quem já passou e de buscar o que ainda falta, quando a saudade que aperta é daquilo que a gente ainda nem viveu de verdade.
Você vai andando, segue em frente. E quanto mais longe vai, mais tem o que ver quando olha para trás. Fica tudo tão distante, tão pequeno que é preciso apertar os olhos para enxergar. Aí o coração acerta o foco e traz tudo de volta aqui dentro, em alta definição. Ontem, hoje e amanhã se reencontram em um só tempo, como colegas de ginásio que se festejam em seus aniversários e nem se dão conta do quanto mudaram, do quanto sumiram no caminho de cada um. Por um instante, olham para trás e a vista assusta. O que veem e o que sentem se juntam numa coisa só. Um sentimento bom, imenso e infinito de voltar para casa. E ao mesmo tempo de seguir em frente, com uma muda de esperanças na mala e uma intenção amorosa no coração.
Um dia a gente acorda depois de grande, olha para trás e está tudo lá. De volta. Ouve os recados doces de tanta alma boa. Vê nossos anos passando em festa, uma vida longa abraçando um futuro próspero sob um céu azul e aberto feito a esperança de um amigo otimista. Então percebe que ainda existe quem faça a vida valer todo o trabalho que dá.
Assim, de repente, a gente mira a vista dos anos e agradece. Ahh… que privilégio é viver ao lado de pessoas imperfeitas! Aquelas que têm um mundo vasto e inteiro no peito e ainda não o encontraram, ou que descobriram ser ele tão grande que se viram perdidas. Gente que erra, sim, mas erra honestamente, tentando acertar. Que se sabe imprecisa, abraça a dúvida, desconfia das certezas intocáveis, das verdades prontas e dos chavões alheios. Gente que vai em frente como pode, firme em seu jeito de respeitar o outro e a si mesma.
Por conta e risco de pessoas assim, a vida sempre há de valer a pena. Quando de qualquer sorte elas se vão, a gente sente a falta delas e do que deixa de ser sem elas. Depois encontra um lugar aqui dentro onde guardá-las para sempre. Até reencontrá-las no tempo-espaço que tiver de ser. Enquanto esse dia não chega, a gente aprende onde guardar nossas saudades.
Peço a Deus que olhe por essa gente. Os viciados em amor, os seres sensíveis que riem e choram numa canção, uma conversa amiga, uma lembrança. As criaturas que estremecem quando leem uma poesia, uma história bela, porque reencontram nelas o caminho das pracinhas de seus corações. Gente abençoada. Peço aqui comigo que em cada alma entristecida, cada mãe separada de seu filho há cinco minutos ou cinquenta anos, cada sujeito que cai, levanta e segue em frente, que em cada um deles sobreviva a impressão de que é preciso guardar as saudades no lugar certo e ir adiante. Que em cada coração sincero resista a esperança de que o amor nos encontre no caminho.
Hoje acordei atrasado, depois dos quarenta, tive saudade de tanta coisa que deixei de ser e agradeci por ter você aqui perto, em minha vista. Há vida esperando por nós! Os pobres e os ricos, os pretos e os brancos, os vermelhos, amarelos e multicoloridos. De toda gente há vida à espera, à espreita, tramando, acontecendo, ramificando e vicejando em seu tempo. É preciso tomá-la nas mãos e viver sem mais. Por você, por mim e por nós, livres e sãos, soltos e vãos, caminhando incompletos no espaço entre hoje e amanhã e depois e pra sempre.
Não é fácil, nunca foi e nem há de ser. Mas daqui eu vejo nossa gente de perto e o céu lá longe. Vejo nosso rumo surgindo num espaço mirrado, espremido entre tanta obrigação, tanta coisa por fazer. Nosso corredorzinho estreito se abrindo, nossas saídas improvisadas. É um caminho acanhado, mas apertando a gente passa. Você sabe: onde cabe um olhar de esperança o mundo inteiro passa.